História delirante
Ricardo Durão, General
Realmente parece que fez tudo, até afirma ser "o responsável pelo Grupo dos Nove". Por vezes até entra em delírio, para não dizer outra coisa. A entrevista a Vasco Lourenço publicada no PÚBLICO sob o título Nunca vi Eanes referir o meu nome, a 14 de Maio de 2009 (a propósito do lançamento do livro Do Interior da Revolução, Manuela Cruzeiro, uma entrevista biográfica a Vasco Lourenço) contém diversas inexactidões, obrigando-me a intervir por fidelidade à verdade histórica.
Não é novidade a truculência, a ligeireza e maniqueísmo com que Vasco Lourenço analisa diversos factos. Também uma certa vaidade e gabarolice: "Fiz o 25 de Abril, fiz o 25 de Novembro..." Não são coisas que se façam, mas em que se participa. Em 25 de Abril não participou, a não ser em espírito, não estava cá. Em 25 de Novembro, sim, como vários outros, constituindo alguns o Estado-Maior de Eanes.
Realmente parece que fez tudo, até afirma ser "o responsável pelo Grupo dos Nove".
Por vezes até entra em delírio, para não dizer outra coisa. No livro de Manuela Cruzeiro, Vasco Lourenço afirma que quando fui solto de Caxias "... Fez questão [eu] de ir ao meu gabinete [Vasco Lourenço] agradecer-me em lágrimas a ajuda à sua libertação." Nada disto se passou.
Eu, até agora, nunca soube que Vasco Lourenço tinha neste caso intercedido a meu favor. Se assim foi, embora atrasado, estou reconhecido, mas creiam que não estou em lágrimas.
Não há dúvida que Manuela Cruzeiro coordena um arquivo com um acervo de documentos muitos dos quais, de acordo com esta prova, não terão credibilidade histórica, a não ser para uma História Delirante, mas parece que muitos outros terão elevado interesse para uma psicanálise.
Deixo-lhe o que já é histórico, goste-se ou não; procurarei ser muito sintético, sem personificações e sem pormenores:
Em 24 de Abril existia uma já prolongada ditadura. Em 25 de Abril é derrubada essa ditadura, por uma acção militar planeada e executada com elevada eficácia e desde logo amplamente apoiada. Em 26 de Abril verifica-se que, conforme afirma Vasco Lourenço: "Nós, quando avançámos para o 25 de Abril, praticamente não preparámos o dia seguinte." Erro grave de que resultou o estabelecimento de um vazio de poder, especialmente agravado por imaturidade, interesses obscuros, irresponsabilidade, omissão, protagonismo, oportunismo e até por várias manifestações de falta de carácter.
Rapidamente se estabeleceu uma adoração irracional pelo novo "bezerro de ouro" em que se constituiu o MFA, que se travestiu de movimento político. Deixando-se manipular, acabou por procurar instrumentalizar as Forças Armadas num determinado sentido político, perdendo a independência que lhe competia.
O Partido Comunista, com pouca implantação mas bem organizado, infiltrou-se por todas as brechas. Tinha uma estratégia bem definida:
- Fazer ruir o Império no sentido das várias parcelas caírem na esfera de influência da União Soviética, explorando e incentivando diversas traições de agentes do MFA. Conseguiu-o. Desencadeou-se uma descolonização "especial de corrida". O que se passou constituiu uma das grandes tragédias da nossa História. Não acabámos com a guerra em África, abandonámos vergonhosamente a guerra em África.
- Colocar aqui o MFA no Poder, a governar sob a sua influência. Neste desígnio foi derrotado.
O Partido Comunista procedeu conforme os seus interesses e objectivos, empregando os seus métodos próprios. Havia que ser confrontado com os partidos que defendiam uma democracia política, pluripartidária e pluralista, fiel ao princípio superior que a condiciona, a liberdade.
O MFA é que se tinha desviado, perdendo a sua especificidade militar e a independência que devia ter preservado, agravando o ambiente de desordem estabelecido e sendo até, por vezes, o principal agente de agitação. Tornava‑se assim no principal inimigo da institucionalização de uma democracia política.
Desencadeou-se uma luta entre democratas e revolucionários. A reforma agrária que mais não era que um dos aspectos do assalto indiscriminado à propriedade privada, as diversas ocupações selvagens, as nacionalizações irracionais, a autogestão, até a ridícula dinamização cultural levada a efeito pelo MFA e também a indisciplina quase generalizada nas Forças Armadas concorreram para que se fizesse luz nos espíritos da maioria da população, acabando por se desencadear um processo de rejeição ao processo revolucionário que deu origem a uma dissensão no MFA através do Documento dos Nove, imediatamente apoiado pela parte sã das Forças Armadas que ainda restava, chegando-se ao momento decisivo em 25 de Novembro de 1975. Lá vai o MFA, lá vai a dita revolução. Acabou por se verificar que o Partido Comunista valia o que passou a valer. Estabeleceu-se uma certa ordem no sentido da institucionalização de uma democracia política. No entanto, ainda demoraria até 1982, quando uma revisão constitucional terminou com o Conselho da Revolução, que conferia ao sistema político vigente um carácter militarista, como tal não-democrático.
A democracia prometida em 25 de Abril de 1974 institucionalizava-se em 1982, oito anos depois e não num ano como se referia. Esta é a História em linhas gerais. Não posso deixar de me referir a três factos muito importantes:
- Unicidade sindical (privilégio de uns, excluindo os restantes)
- Institucionalização do MFA (instrumentalização das Forças Armadas num sentido político determinado)
- Pacto MFA-Partidos (supremacia do MFA sobre os partidos políticos)
Estes factos definem concretamente uma pretensão totalitária e militarista. Quem os apoiou?
Os que lutavam contra a institucionalização de uma democracia política, bem como muitos elementos do MFA, em votação de braço no ar na respectiva assembleia, entre eles Vasco Lourenço. Faço-lhe justiça de crer que posteriormente mudou de posição, quando aprendeu qualquer coisa.
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