DIAÁRIO DE NOTÍCIAS - 22.04.2004
Agente Agrelos o «nosso homem no Malawi»
S. L.
A 5 de Agosto de 1968, numa cerimónia com pompa e circunstância, adaptada ao local, em Metangula, no Norte de Moçambique, representantes de Portugal e do Malawi transaccionaram uma lancha de fiscalização pequena (LFP) de nome Castor.
Aparentemente, tratava-se de uma cerimónia de transferência de um navio de um país para outro. Na verdade, estava em marcha uma das mais bem sucedidas «operações encobertas» efectuadas pelo regime colonial português.
No Arquivo de Marinha, instalado na antiga Fábrica da Cordoaria, em Lisboa, não existem relatórios oficiais que possam acompanhar o desenvolvimento dessa operação. Apenas se pode consultar um único documento oficial que reporta ao acto legal de transferência da embarcação: «A 5 de Agosto de 1968, em Augusto Cardoso, e conforme notas diplomáticas tomadas entre Portugal e o Malawi», foi a lancha de fiscalização Castor, da Armada Portuguesa, transaccionada «por empréstimo».
Do documento oficial retira-se que, pela parte portuguesa, rubricou-o o então comodoro Tierno Bagulho, comandante naval de Moçambique, e «em representação» do Governo do Malawi, Aleke Banda, ministro da Economia e presidente do Malawi Youngers Pionners. Tudo muito formal.
Mas nessa pasta da Armada está arquivado um relato sucinto, feito nos anos 80, para a comissão Coloredo, que recolheu dados sobre a actividade na Marinha nas colónias após o 25 de Abril, do primeiro comandante da lancha sob a orientação malawiana, um oficial da Reserva Naval portuguesa que, em teoria, «se passou para o outro lado», e que dá algumas pistas sobre o que estava em jogo.
Manuel Alexandre de Sousa Pinto Agrelos, engenheiro de profissão, que era o comandante português da lancha Mercúrio, seguiu para a lancha Castor, e tornou-se, para os efeitos desejados, «um desertor», ainda antes da transacção, e assistiu à entrega já como oficial da Marinha do Malawi.
Descreve que a lancha foi baptizada com o nome de John Chilembwe, um herói do Malawi. Com o novo comandante da lancha seguiram o marinheiro telegrafista Mário Fernandes e o cabo fogueiro Martinica, que foram graduados, respectivamente, em segundo e primeiro-sargentos da Marinha de Guerra do Malawi. O resto da guarnição pertencia aos Young Pioneers, uma espécie de «guarda pretoriana» do regime ditatorial de Hastings Banda.
Agrelos faz questão de assinalar no seu breve relatório que, entre os presentes, na cerimónia de entrega estava o engenheiro Jorge Jardim, cônsul honorário do Malawi em Moçambique. Jardim ficou a ser «o pagador» do salário de Manuel Agrelos, que o depositava numa conta especial de um banco.
Mas Jorge Jardim tornava-se, na prática, o interlocutor das «informações» que o oficial português da Marinha do Malawi lhe fornecia.
Na sua nova função, Manuel Agrelos foi algo mais que um simples oficial comandante de uma pequena lancha. Na realidade, tornou-se no «ministro» da Marinha malawiana. O «agente especial» português participou em reuniões do Conselho de Ministros do Malawi e teve vários encontros com o então Chefe de Estado do país, Hastings Banda.
Do ponto de vista estratégico-militar, com a lancha, Agrelos controlava, em grande medida, todo o movimento de embarcações que andavam, de um lado para outro, no Lago Niassa. Incluindo, portanto, as que serviam de apoio logístico à Frelimo.
Manuel Agrelos teve contactos, de diferentes tipos, mais «profundos» ou mais «ligeiros», com altos dirigentes da Frelimo, incluindo Eduardo Mondlane.
No relatório que entregou à Coloredo, ele revela um dos aspectos menos conhecidos da «parceria» que envolvia a passagem da embarcação que comandava para o país: a flotilha de lanchas de Metangula passava a ser abastecida em gasóleo vindo do Malawi.
A lancha de desembarque média, que ia buscar o combustível, levava um logótipo da SONAP e os membros da guarnição tinham fardas da mesma companhia petrolífera portuguesa.
Agrelos foi, durante muito tempo, um enigma para muitos dos «brancos» que gravitavam, de uma maneira ou de outra, nas mesmas funções no interior das Forças Armadas do Malawi, principalmente os ingleses.
Quem seria aquele branco, que se apresentava completamente desligado das Forças Armadas portuguesas, e que falava fluentemente inglês?
Com o tempo, aceitaram-no e começou a frequentar os selectos clubes «europeus» mantidos, apesar da independência, naquela antiga colónia.
A sua missão «tipo James Bond» decorreu, pacificamente, até que terminou a sua comissão de serviço em 1969.
Manuel Agrelos alistou-se a 3 de Setembro de 1966 e ascendeu a aspirante a 15 de Março de 1967.
Foi nomeado para Moçambique e exerceu o comando de uma lancha. Em idêntica função esteve um seu camarada do mesmo curso, Pedro Lynce de Faria. Deste curso de oficiais da Reserva Naval, Agrelos teve como camaradas, entre outros, Manuel e João Porto, Alípio Dias e Vítor Constâncio.
O jovem primeiro-oficial comandante da lancha John Chilembwe terminou «a sua comissão» em 1969 e, através de Jorge Jardim, Hastings Banda e o governador colonial português concordaram com a continuidade de outros oficiais portugueses.
Assim, o «agente especial» Agrelos deu lugar a outro oficial da Marinha da Reserva Naval . O «nosso homem no Malawi» transmitiu a missão, e outros se seguiram até ao 25 de Abril de 1974.
Todavia, a função de «agente James Bond» português esteve quase a terminar tragédia em 1974. Quando se dá o 25 de Abril em Portugal, o «ministro» da Marinha do Malawi, que era um tenente fuzileiro especial, de nome Lhano Preto, passou de amigo a inimigo e acabou na prisão, colocado numa espécie de «campo de concentração». Conseguiu fugir e chegar a Moçambique.
Seguiu a carreira de oficial fuzileiro na Armada e como capitão-de- mar-e-guerra comandou a Escola de Fuzileiros, em Vale de Zebro.
Actualmente, na reserva activa, encontra-se em missão de cooperação técnico-militar em Angola. Está a preparar um livro de memórias sobre o tempo que esteve ao serviço do Malawi.
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