EXPRESSO - 17.04.2004
Moçambique - A misteriosa operação Zulu
A partir de Janeiro de 1974, os militares em Moçambique passaram a ter duas frentes: a guerrilha da Frelimo e as manifestações da população branca das cidades. Farto da guerra, o movimento dos capitães preparou a «Operação Zulu»
Alterar tamanho
LUIZ CARVALHO
Aniceto Afonso guarda no Arquivo Histórico-Militar os segredos do movimento dos capitães
Em Janeiro de 1974, parte da população branca das cidades de Vila Pery e da Beira desce à rua. É uma manifestação nunca vista em nenhuma das colónias em guerra. Ao contrário do que seria de esperar, o alvo principal não é a Frelimo, que, numa emboscada em Vila Manica, matara uma branca, mulher de um fazendeiro. A multidão, possessa, vira-se, sim, contra os próprios militares portugueses, que acusa de serem incompetentes na guerra ao chamado «terrorismo». O comércio paralisa na Beira, onde as manifestações se prolongam por três dias. O comandante-chefe das Forças Armadas é insultado, instalações militares são apedrejadas, há confrontos violentos, tiros e prisões. O movimento dos capitães reage de pronto: reuniões, abaixo-assinados, telegramas contra o enxovalho a que as Forças Armadas foram sujeitas. Exige-se a demissão do governador da Beira e a punição exemplar dos responsáveis. Cansados de 13 anos de uma guerra sem solução militar e indignados perante a ingratidão da população branca, os capitães e majores preparam um golpe de força: a «Operação Zulu».
Desde há meses que os capitães estão num verdadeiro reboliço. Sobretudo desde que, em 13 de Setembro de 1973, tiveram uma primeira reunião conspirativa, em Nampula. Um dos impulsionadores é o capitão Aniceto Afonso, acabado de chegar a Moçambique - razão por que não pôde participar no grande plenário de capitães, em Évora, no dia 9. Esta é a segunda comissão de Aniceto Afonso - hoje tenente-coronel na reserva e director (desde 1993) do Arquivo Histórico-Militar.
Em Moçambique, o Comando Chefe está instalado em Nampula. Aqui chegado, o capitão Afonso apressa-se a pôr em prática as instruções trazidas da metrópole. Nessa primeira reunião, realizada em casa de um major, participam cerca de uma dúzia de oficiais, sobretudo capitães. Do encontro sai um abaixo-assinado, advertindo o Governo contra a aplicação dos decretos-lei nº 353 e 490/73, que alteraram as condições de acesso ao quadro permanente e que tanta indignação causaram. O documento, que já circulara na metrópole, na Guiné e em Angola, é subscrito por 107 oficiais do quadro de Moçambique.
A estrutura do movimento mantém-se relativamente informal durante três meses. Se é certo que foi em Moçambique que o movimento arrancou mais tarde, a verdade é que - como frisa Aniceto Afonso - «implantou-se rapidamente, estando praticamente estruturado no final de Outubro».
Operação militar no norte de Moçambique
No mesmo mês, o movimento dos capitães promove a nível nacional uma inédita e espectacular iniciativa: um pedido de demissão colectivo. O objectivo é forçar a revogação dos referidos decretos, considerados inaceitáveis. O requerimento é assinado sem data e entregue à Comissão de cada um dos territórios. Aniceto Afonso, que conserva os originais, mostra o balanço efectuado a 30 de Outubro: 368 pedidos de demissão na metrópole, 120 em Angola, 60 em Moçambique, 50 na Guiné, num total de 598, entre capitães e majores. «Alguns dos ‘demissionários’ vieram a ocupar mais tarde lugares importantíssimos na hierarquia das Forças Armadas», recorda o coronel na reforma e ex-deputado da UDP Mário Tomé.
A primeira Comissão do Movimento dos Capitães de Moçambique é eleita em Dezembro de 1973. Participam mais de uma trintena de oficiais. Historiador, Aniceto Afonso, de 62 anos, conserva as actas e os apontamentos pessoais de todas as reuniões. Os mais votados, com 31 votos, são o capitão Mário Tomé e o major Gabriel Teixeira (actual general na reserva e que chegou a ser vice-chefe do Estado-Maior do Exército). Os restantes três elementos - o major Nuno Lousada e os capitães Aniceto Afonso e Melo Carvalho - obtêm 27 votos. A Comissão, que integra oficiais de infantaria, de artilharia, de cavalaria e do próprio Estado-Maior, manter-se-á com esta composição até ao 25 de Abril. Em Lisboa, o contacto é o capitão Vasco Lourenço, um dos motores do movimento e ex-colega de Aniceto Afonso na Academia Militar.
Uma das primeiras iniciativas da Comissão é a elaboração de um dossier sobre o movimento, entregue a oficiais superiores não aderentes. A ideia é evitar que a hierarquia, ao nível de comandantes de batalhão e de sector, seja deficientemente informada. Sabe-se que um dos dossiers foi parar às mãos da delegação da PIDE/DGS de Lourenço Marques, que logo o remeteu para Lisboa. Donde não demorou muito a chegar ao chefe do Governo. Foi o próprio Marcello Caetano quem o evocou (em O 25 de Abril e o Ultramar), ao falar da escassa colaboração prestada pela polícia política: «A única informação extensa e concreta que dos seus serviços recebi, já nas vésperas do 25 de Abril, sobre as intenções dos militares, veio de Moçambique.»
Na viragem do ano, a guerra conhece um agravamento sensível. Por um lado, a Frelimo estreia o temível míssil terra-ar «Strella», de fabrico soviético, já utilizado com tremenda eficácia na Guiné. Por outro lado, e após o fracasso da mega-operação «Nó Górdio», liderada pelo general Kaúlza de Arriaga, a guerrilha alarga-se a novas regiões: ultrapassa o eixo que liga a cidade da Beira à vizinha Rodésia (actual Zimbabué) e penetra na província da Zambézia. Entre as unidades oriundas da metrópole é patente o desânimo e a saturação, com muitas delas a serem rendidas com seis meses de atraso. Em Nampula, ouve-se a voz autorizada do bispo D. Manuel Vieira Pinto, que aproveita o Natal e o Ano Novo para propor um «repensar a guerra». Feito no rescaldo dos massacres de Wiriamu, o apelo ressoa fortemente. «Tomámos muito em consideração os textos do bispo, que trouxeram muita gente para o movimento», reconhece Mário Tomé, que esteve oito anos em África.
LUIZ CARVALHO
Mário Tomé e Aniceto Afonso, no pátio do Museu Militar
Entretanto, na Beira - terminal do caminho-de-ferro com o mesmo nome, importante porto do Índico e segunda cidade da província -, a população branca entra em ebulição. Na memória de todos estão bem vivos os incidentes de 1972, em torno do caso dos padres do Macuti. Ou seja: a denúncia, a partir do púlpito daquela paróquia, dos crimes cometidos por militares contra populações negras, o que valeu a prisão e expulsão de dois sacerdotes católicos. Em Janeiro de 1974, porém, a situação torna-se explosiva. O detonador é uma emboscada efectuada, no dia 14, pela Frelimo nos arredores de Vila Manica, uma zona nunca fustigada. Entre as vítimas figura a mulher de um fazendeiro branco. A população das cidades, que sempre se sentira imune à guerra, fica em estado de choque. Sente-se desprotegida e abandonada pela tropa, que é vivamente criticada.
Um detalhado relatório do movimento dos capitães da Beira dá conta dos acontecimentos subsequentes. Assim, a 16 de Janeiro, verifica-se uma manifestação em Vila Pery. Em reunião com membros do Governo e chefias militares, elementos civis afirmam «que prescindiam da presença do Exército» e reivindicam «o fornecimento de armamento e meios de comunicação» para a sua autodefesa.
Os protestos alastram à Beira. A 17, e por iniciativa da Associação Comercial, os comerciantes fazem uma greve geral. Ao mesmo tempo, uma multidão de brancos concentra-se em frente do edifício do Governo, reclamando apoio «na repressão ao terrorismo» e a satisfação das «reivindicações apresentadas pela população» de Vila Pery. A messe dos oficiais é o alvo privilegiado da ira popular. Perante a passividade das forças policiais, os militares são vaiados e insultados e a messe apedrejada. A Polícia Militar intervém à bastonada. Ouvem-se tiros de ambos os lados. Oito civis recebem tratamento hospitalar, enquanto um capitão parte uma clavícula.
No dia seguinte, 18, aterram na Beira o comandante-chefe de Moçambique, general Basto Machado, bem como o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, general Costa Gomes, ido propositadamente de Lisboa. Machado é insultado por uma multidão enfurecida. Há recontros com a PSP, enquanto novos edifícios militares são apedrejados. Os incidentes repetem-se no dia seguinte, com a PSP a efectuar várias prisões; uma multidão concentra-se em frente do comando e obriga à libertação dos detidos.
Comunicado do movimento dos capitães sobre a «Operação Zulu»
Reunido de emergência, o movimento dos capitães de Moçambique reflecte sobre os incidentes. Uma conclusão retira de imediato: a morte da mulher branca «apenas serviu de pretexto para iniciar à viva voz e declaradamente a campanha contra o prestígio das Forças Armadas».
A primeira reacção é um abaixo-assinado dirigido ao comandante-chefe a «exigir a tomada de medidas imediatas». Entre elas, destaca-se a «demissão imediata do governador da Beira e demais autoridades coniventes». Reclama-se um «inquérito exaustivo» e a «punição exemplar» dos promotores. Ultrapassando os episódios da Beira, o texto pede uma «imediata acção contra a forma tendenciosa e condicionada como tem sido deformada a opinião pública nacional» - forma subtil de se insurgir contra a censura. Num plano político, o documento lembra que o papel das Forças Armadas é o de «dar tempo ao Governo da Nação de promover as reformas sociais e económicas e o esforço diplomático necessário para pôr fim às causas da subversão». Por fim, vem uma crítica explícita ao Governo de Marcello Caetano, por «se esquivar a assumir as verdadeiras responsabilidades que lhe cabem». Primeiro documento aberto a oficiais milicianos, o abaixo-assinado, de 23 de Janeiro, recolhe mais de 350 adesões. O primeiro subscritor é Gabriel Teixeira, um dos majores mais antigos e prestigiados, oriundo do Estado-Maior.
Uma segunda atitude é o envio de dois telegramas à Comissão de Lisboa. «Começam a concretizar-se os nossos receios de criação de um bode expiatório», lê-se no primeiro, que exige «medidas urgentes» que impeçam que as Forças Armadas «continuem sendo enxovalhadas». No segundo, propõe-se um «contacto imediato» com o Governo e alerta-se para a ameaça, em Vila Pery, de um «recontro entre a população civil europeia e o Exército». Em comunicado a todos os aderentes, a Comissão lamenta: «Mais uma vez, os nossos chefes se deixaram ficar e permitiram o enxovalho das Forças Armadas, absolutamente inaudito e inadmissível.»
Na opinião de Aniceto Afonso, os telegramas «vieram relançar a questão colonial em Lisboa». Com efeito, e segundo Mário Tomé, «o movimento em Portugal nessa altura estava muito amorfo». Razões várias levaram a esse adormecimento, desde o aumento dos vencimentos dos oficiais à revogação dos contestados decretos, passando por várias alterações na cúpula militar, bem acolhidas pelo oficialato. No Governo, com efeito, o coronel Viana de Lemos assumira a pasta de subsecretário de Estado do Exército. E o topo da hierarquia passara a ser ocupado por dois generais de confiança: Costa Gomes, como chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, e António de Spínola, como vice-chefe.
Em Lisboa, a Comissão coordenadora entende o recado vindo de Moçambique. Logo na primeira circular de 1974, de 23 de Janeiro, o movimento faz-se eco dos acontecimentos da Beira e promete contactar a mais alta chefia militar. No dia seguinte, Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Lourenço contactam Spínola, de quem obtêm apoio quanto à situação na Beira.
A Comissão de Nampula não se fica por aqui. «Os acontecimentos da Beira constituíram uma viragem enorme na nossa capacidade de mobilização», afirma, categórico, o hoje coronel Mário Tomé, de 63 anos. Parte da população branca de Vila Pery e da Beira acusava a tropa de, como chegou a ser escrito na imprensa, «não combaterem o terrorismo e não cumprirem o seu dever» para com a pátria. Farta de palavras e promessas, a Comissão dispõe-se a enveredar pela força e lança a «Operação Zulu». Em comunicado enviado ainda no dia 22 a todos os apoiantes, a Comissão escreve: «Como é óbvio, não basta continuarmos com exposições, que no fundo (...) para pouco servem. Assim, se as nossas pretensões acerca deste caso não forem atendidas, decidimos agir e por qualquer forma fazer cumprir o que exigimos.» Seguem-se algumas normas, visando a manifestação de apoio de todos os oficiais e respectivas forças, que se devem manter «alerta». Assim, ao receberem, via rádio, a mensagem com o código «Zulu», pede-se aos oficiais que revelem a sua adesão através da senha «Verde». «Será escusado chamarmos a atenção para o grau de absoluto sigilo no tratamento deste assunto», adverte o comunicado, que conclui de forma algo enigmática: «Em breve daremos (...) mais pormenores relativos a esta operação, que terá o nome de código ZULU.»
Apesar da promessa, esta operação não mais virá a ser referida em nenhum documento. «Não foi necessário. O nosso principal objectivo era pressionar a Comissão de Lisboa», explica Aniceto Afonso. Tomé concorda: «Era um aviso para esta malta daqui, de que, se não avançassem, avançávamos nós em Moçambique.»
Mas avançar para quê? E com quem? O comunicado é omisso, e toda a extensa literatura sobre o 25 de Abril desconhece esta «Operação Zulu». Uma única alusão, e indirecta, foi feita pelo próprio Aniceto Afonso num artigo intitulado «O Movimento dos Capitães em Moçambique. Algumas Considerações», publicado em 1994 na «Revista de História das Ideias». Escreveu ele que a Comissão de Nampula «preparou uma posição de força perante os comandos locais». O plano foi «dado a conhecer à Comissão de Lisboa, que ficou ciente da possibilidade de vir a ser ultrapassada por acontecimentos fora do seu controlo».
Trinta anos depois, o actual director do Arquivo Histórico-Militar desvenda o mistério: «A ideia era cortar a cadeia de comando e paralisar toda a estrutura operacional.» Noutras palavras, tratava-se de uma «tomada do poder militar em Moçambique, mais do que propriamente um golpe de Estado». Mário Tomé reforça esta disposição: «É preciso não esquecer que a discussão nas nossas reuniões era muito mais avançada do que aquilo que púnhamos nos papéis.»
Para além das intenções, será que os capitães e majores teriam condições de tomar conta do aparelho militar? Tomé não duvida: «Não era tão complicado como isso e estou certo que era claramente exequível.» Desde finais de 1973 que o movimento estava profundamente enraizado e organizado numa estreita malha. «Tínhamos gente em todas as zonas com actividade militar.» A única excepção era Lourenço Marques, capital e centro político da colónia, mas que vivia à margem da guerra e quase sem unidades operacionais.
Além disso, não havia informação que escapasse à Comissão, que controlava a nevrálgica Chefia do Reconhecimento das Transmissões, por onde passava tudo o que era código e cifra. Era lá que estavam colocados os capitães Aniceto Afonso e Melo de Carvalho e o major Cardoso do Amaral. Quanto a Mário Tomé, que fora ajudante de campo do anterior comandante-chefe, general Kaúlza de Arriaga, estava no gabinete dos adjuntos do Comando Chefe, com acesso a informações cruciais. No território que verdadeiramente contava, «a nossa estrutura era tanto ou mais eficaz que a cadeia de comando hierárquica», garante Aniceto Afonso.
Acontecimentos posteriores encarregaram-se de passar para plano secundário o episódio da Beira. Com o lançamento, em Fevereiro, do livro de Spínola Portugal e o Futuro, o regime entrou em contagem descendente. A 5 de Março, o movimento dos capitães teve uma reunião decisiva em Cascais, onde elegeu como chefes os generais Costa Gomes e António de Spínola. A 14, estes dois oficiais foram exonerados por Marcello Caetano da chefia do Estado-Maior General das Forças Armadas. Como reacção, dois dias depois o Regimento de Infantaria das Caldas da Rainha sublevou-se. Daí até ao 25 de Abril faltava pouco mais de um mês...
TEXTO DE JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA
Recent Comments