PUBLICO
Por ELIZABETH CEITA VERA CRUZ
Sábado, 24 de Abril de 2004
Poderia aqui falar-lhes do hediondo sistema colonial mas, não somente seria um truísmo adjectivá-lo como também, 30 anos depois, é suposto que se algumas dúvidas tivesse havido, estas tenham sido já dissipadas. Do mesmo modo que existe consenso no que diz respeito à urgência e necessidade de uma revolução em Portugal em que sobreviesse a liberdade, a democracia e o progresso, assim também os
povos (de) além-mar clamavam pelo direito de gizarem os seus próprios destinos. Compreende-se pois que o 25 de Abril, mais do que uma data, represente o (re)começo da vida não somente dos e para os
portugueses, mas igualmente para os angolanos, caboverdeanos, guineenses, moçambicanos e são-tomenses.
Até 24 de Abril de 1974 viveram-se, nas províncias ultramarinas portuguesas, momentos de tensão, de revolta, de angústia, de medo. Medo de ouvir por exemplo o "Angola Combatente", o noticiário que era
ouvido em surdina, com um ouvido na rádio e outro na porta, não fosse o diabo tecê-las e a temível PIDE-DGS (em letras maiúsculas) irrompesse pela casa dentro. Á semelhança de outros tantos dias, o 24
de Abril foi vivido sob o signo da esperança, esperança na mudança, esperança na independência por que se batiam os movimentos de libertação. Lá, do outro lado do Atlântico, a incerteza dera lugar à certeza: era uma mera questão de tempo. Entretanto, a vida ia correndo com mais ou menos sobressaltos e, apesar de algumas mudanças que o início das lutas de libertação (em 1961) introduziram e da badalada primavera marcelista, o sistema continuava a ser o mesmo - por isso, um alvo a abater. A revogação do "Estatuto do Indigenato", um dos expoentes máximos da colonização que marcou indelevelmente o
sistema colonial, permitiu que a esperança se renovasse e que a luta empreendida ganhasse um novo fôlego. O "Angola Combatente", ouvido ao fim da tarde, dava conta dos avanços da guerra de libertação,
daqueles que haviam chegado (em segurança) e engrossado o grupo no maqui. Era com avidez que as notícias eram mastigadas em silêncio, sendo os comentários sublimados pela alegria de que não estávamos sós, que os nossos irmãos se encontravam bem e que as pequenas vicissitudes da guerra não eram suficientes para abalar o ímpeto, a inabalável certeza de que o caminho da vitória se encontrava cada vez mais próximo. Se tivesse que responder à já famosa pergunta de Baptista Bastos, a resposta já foi adivinhada pelos leitores: encontrava-me em Angola, uma adolescente que viveu o antes e o dia
seguinte com o fervor inerente às revoluções. Pois é, o 25 de Abril de 1974 também foi vivido nas então províncias portuguesas de África.
Mas porque será que o 25 de Abril, a vivência deste dia em terras de África continua oculto? Importa não esquecer que o 25 de Abril de 1974 foi o corolário de uma luta em seis frentes - não nos podemos
ficar pelo discurso da língua (portuguesa) quando a luta travada, também ela, foi comum e nos identifica.
O dia seguinte foi, por isso, vivido com um misto de encantamento e estranheza, de exaltação e prudência. Mas os gritos de vitória cedo se fizeram ouvir rompendo as grilhetas da opressão. O 25 de Abril de
1974 foi, contrariamente ao que alguns poderão pensar, um dia igualmente importante, único: para os angolanos, caboverdeanos, guineenses, moçambicanos e são-tomenses. Era a alvorada em toda a sua
pujança que se anunciava. Como que num passo de mágica, o futuro começava: o "Angola Combatente" já poderia ser ouvido sem temores, isso enquanto os movimentos não chegassem às terras por que se
bateram. Traçados os cenários da chegada dos movimentos de libertação, para muitas famílias finalmente o (re)encontro com os familiares que se encontravam no maqui e, não esquecer, com os presos políticos em S. Nicolau, no Tarrafal. Após decénios de resistência, cumpria-se o desiderato de que contra um povo oprimido não há força que o consiga o deter (sobretudo quando falamos de ocupação e
opressão por parte de pessoas, grupos, povos, países terceiros, acrescento eu). É bem verdade que a revolução de Abril de 1974, e mais propriamente o dia 25 só tem paralelo com o dia das independências de Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e S.Tomé e Príncipe, mas não é menos verdade que o período que medeia estes dois momentos fez história, uma história que continua bem viva na memória dos que a viveram e que importa passar o testemunho.
Afinal, só se passaram 30 anos, e muitos de nós - deste e do outro lado do Atlântico - participamos de forma mais ou menos directa, mas seguramente eufórica, no dealbar, na construção e no sucesso de
Abril. A homenagem a Abril é, pois, um imperativo: este o legado que se poderá deixar às gerações futuras.
Professora de antropologia, angolana
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