CORREIO DA MANHÃ - 2004-04-25
25 de Abril – Os espoliados das ex-colónias
Há o campeão de boxe que agora vive num quarto alugado; ou a descendente de princesa hoje confinada às paredes húmidas de um apartamento em Chelas. E há mais, 920 mil histórias de pessoas que perderam tudo, ou quase, depois da revolução.
Wing Wa está sentado num canto esquecido à espera do maior combate da sua vida. Mas o gongo tarda em soar. Aos 74 anos, a morar num quarto alugado na Margem Sul, resta-lhe pouco da glória que o tornou um dos melhores pugilistas portugueses de Moçambique nos anos 40 e 50. A fama do seu gancho de esquerda estendia-se da Beira a Joanesburgo, passando pela então Rodésia, só que a história apanhou-o de surpresa e desferiu-lhe um golpe certeiro. A 10 de Janeiro de 1976, o atleta carpinteiro de origem chinesa aterrou em Lisboa, para nunca mais voltar a África. “Era a minha terra”, recorda. Milhares de pessoas dizem o mesmo de outras tantas vilas e cidades angolanas e moçambicanas que abandonaram nos anos seguintes ao 25 de Abril de 1974. Mas a saudade não foi a única coisa a ficar por lá, a um oceano de distância. Ficaram casas, carros, fábricas. E ficaram vidas. Muitas delas para sempre.
Chama-se Maria Helena de Vasconcelos e Sá, neta de um bisneto de uma princesa de Castela. Estudou Antropologia na faculdade, até ao segundo ano, numa altura em que eram raras as mulheres nas cadeiras do saber. Tem 73 anos. “Fui para África com um ano e fiquei até ter dez ou onze anos. Depois, vim estudar para Portugal e, após a morte do meu pai acabei por regressar”, conta, sentada à beira de uma fotografia do menino que seria seu avô, José Maria Belchior da Cruz de Faria e Sousa de Vasconcelos e Sá.
Como funcionária dos correios esteve em Maputo, em Quelimane e em Nampula. Casou e foi mãe, sempre embalada pela vida e pelos feitos dos antepassados. Como o avô, que ajudou a construir um farol e que derrotou um tubarão moçambicano a golpes de catana. Ou o primo que era comandante da Força Aérea. “Tenho muitas saudades de Moçambique, não me adapto a Portugal. A vida era totalmente diferente.” A mudança começou em 1974. “Depois de Abril, a coisa começou a ficar confusa. Um dia, tive de sair do serviço debaixo de um tiroteio. Eu via as pessoas passarem a escorrer sangue”, recorda, a 30 anos de distância.
Os tremores que a atacaram nessa tarde, não os consegue esquecer. Foram o primeiro sinal. Dois anos depois, numa madrugada fria de Outubro, aterrava em Portugal. Outra vez. “Eu não tinha muita coisa lá. Havia um terreno, bom, que tive de vender muito barato, quase dado.” Como era funcionária pública, foi reintegrada e ao fim de pouco tempo estava de novo a trabalhar. Mas vida voltou a trocar-lhe as voltas. Sem marido, tinha 15 contos para viver e ajudar o filho. “A única forma foi inscrever-me nas casas da câmara. E eles mandaram-me para aqui”, explica Maria Helena de Vasconcelos e Sá, neta de um bisneto de uma princesa de Castela, que hoje vive num andar em Chelas, com dois cafés à porta e as paredes carregadas de humidade.
A GUERRA DOS NÚMEROS
Ao certo, ninguém sabe quantos portugueses abandonaram as ex-províncias do Ultramar, entre 1974 e 1976, rumo a Lisboa. No quinto andar de um prédio junto ao Terreiro do Paço, duas associações de espoliados, a de Angola (AEANG) e a de Moçambique (AEMO), fazem todos os dias as contas aos últimos trinta anos. “Não há uma estatística exacta do número de pessoas que deixaram Moçambique”, admite Eduardo Alves, presidente da AEMO. “Mas o número de espoliados rondará as 85 mil famílias, ou 320 mil pessoas.” Na sala ao lado, Lucas Martins empenha-se na luta dos angolanos. “Penso que foram apresentadas perto de 80 mil relações de bens que ficaram em Angola, a que corresponderão quase 600 mil pessoas.”
Quatro eram a família Mota Almeida. “Nasci em Luanda em 1965”, começa por contar Fátima, a filha mais nova. Até aos dez anos, a sua vida foi igual à de tantas outras crianças. “Como era a vida... O calor, o andar na rua de pé descalço, de cuecas. Ninguém olhava, ninguém ligava. Se aparecia um conhecido, ficava lá em casa uma semana, duas, meses. Ninguém ligava a nada.” Antes de dizer como tudo é diferente, como sente saudades do calor, espreita para a rua pela janela do seu cabeleireiro em Campo de Ourique. “Imagine o que era fazer isso aqui. Chamavam-me logo maluca.”
Não é o melhor adjectivo. Aos dez anos, a vida de Fátima tornou-se diferente da de todas as crianças. “Quando vim para Lisboa, foi a primeira vez que andei de avião. Adorei. O que me impressionou mais quando cheguei foi estar sozinha. A hospedeira é que me entregou. Havia muitas pessoas à espera, com cartazes e nomes. Sabia que ia ter com um tio meu, que não conhecia, chamado Hermínio.” Chegou uma menina, com roupas e bonecas, que foi morar para Corroios.
A seguir veio a irmã. Depois a mãe e o pai quando conseguiram voo em Luanda. Durante quatro anos viveram cada um em sua casa. “As primeiras semanas foram muito dolorosas, chorava todos os dias. Estávamos todos separados porque não tínhamos onde ficar. É normal, não é?”. Para trás ficava a moradia de esquina perto de Luanda, onde nas piores noites de tiroteio se andava de gatas do quarto para a cozinha e de volta. “Às vezes, eu ficava ali sozinha, punha uma almofada no chão e deitava-me a ver os tiros passar...” Foi quando os disparos se tornaram demasiado intensos que a família escolheu voltar. “Eu era pequena, mas acho que a minha irmã e os meus pais sofreram imenso. Eles deixaram lá tudo, abandonaram tudo. Casa, terrenos, a vida toda.”
Aos 39 anos, Fátima faz o que pode para evitar que também a memória desapareça. Não, não é só o caderno onde estão anotadas as datas e que folheia nervosa. Baptizou o filho com o nome do seu pai, Bernardo. Avô e neto nunca se conheceram, Bernardo, o mais velho, morreu nove anos depois de ter chegado a Portugal. “Falo muito de Angola com o meu filho. Conto-lhe como era o avô, como ele ajudou a construir muitas coisas, inclusive a Igreja onde fui baptizada. Quando puder, quero regressar.” O que Fátima também não quer esquecer é o calor, o cheiro da maresia, da terra molhada, das plantas.
TAMBÉM HÁ VITÓRIAS
África entrou na vida de Artur Catarino aos 30 anos. “Fui para lá e comecei do nada. Mas fiz uma obra que ficou, digna de se ver ainda hoje”, garante o administrador da Progelcone, a empresa especializada no fabrico de cones para gelados que emprega 120 pessoas na zona de Cascais e que Artur Catarino criou, quase a partir do nada, depois de regressar a Portugal. “Saí da universidade aos 11 anos. Fiz a quarta classe em Mação, Abrantes, e vim trabalhar para Lisboa. Fiquei quinze anos numa firma de distribuição de queijos e carnes. Em 1965, ofereci-me para ir para Moçambique.”
Cinco anos depois, o negócio prosperava na Matola, perto de Maputo. De tal modo que, quando foi proibida a importação de carne de porco da metrópole, Artur Catarino teve condições para abrir a sua fábrica. A Bomsuíno, que continuou a crescer. A 24 de Abril de 1974 saiu de Maputo com a mulher a caminho da Alemanha, para comprar máquinas. Estava prevista uma paragem em Lisboa. A revolução apanhou-os. “Parte daquelas máquinas, quando chegaram a Moçambique, já eu lá não estava.”
Artur soube que era altura de deixar a África durante uma reunião na fábrica em Outubro de 1975. “Um dia, a Frelimo foi lá e um dos tipos, a dada altura, diz aos trabalhadores: ‘Camaradas, isto que está aqui é vosso. Vocês é que construíram a fábrica, vocês é que trabalham, têm de aprender a administrar’. E foi aí que tomei a decisão.” Uma semana depois, Artur chegou a casa à hora do almoço e disse à mulher: “‘Prepara a mala, porque daqui a bocado vamos embora’. Duas horas depois estávamos a caminho da Suazilândia.”
Aos 68 anos, Artur Catarino continua a fazer um horário das oito às dez da noite. “Comecei a trabalhar muito cedo, fui para Moçambique trabalhar, voltei para Portugal e vim trabalhar.” Há 30 anos perdeu quase tudo. Recompôs-se. “A valores de hoje, tudo o que lá deixei valia mais de um milhão de contos. Mas nunca pensei em receber dali fosse o que fosse. Eles dizem que não mandaram ninguém embora e a verdade é essa. Só que proporcionaram para que eu me viesse embora. A situação estava insustentável.”
QUANTO VALE UM PAÍS?
As duas associações que lutam pelos direitos dos espoliados não arriscam sequer um número quando se trata de saber o valor das indemnizações que, defendem, são devidas a quem veio de África. “Quanto vale um país? Quanto valem os edifícios nas principais cidades de Angola? E os terrenos? E as fábricas?”, pergunta, respondendo, Lucas Martins. A AEANG apoia 1400 pessoas que decidiram fazer as contas e avançar com processos contra o Estado português. Na sala de Moçambique, os processos são menos de vinte. “São modos diferentes de lutar”, explica Eduardo Alves, da AEMO. Mas ao fim de alguns anos de avanços e recuos nos tribunais, as duas associações estão de acordo num ponto fundamental. “A solução para este problema tem de ser tomada a nível político”, resume o presidente da AEMO.
Seja qual for a verba, o mais certo é que se escreva em milhões. “Não podemos exigir, ainda para mais na situação actual em que o erário público está que seja tudo pago”, admite Eduardo Alves. Nos diversos contactos políticos que têm mantido já fizeram as sugestões mais diversas. Pagamentos faseados, pagamentos através de títulos da dívida pública negociáveis em bolsa, pagamentos em forma de pensão. “A coisa está sempre em fase de estudo. Mas nunca avança”, desabafa Lucas Martins. “Neste momento a contagem do tempo de reforma dos espoliados – não os que estavam na função pública mas os particulares –, seria uma espécie de primeiro passo”, diz. Eduardo Alves subscreve.
Um e outro conhecem histórias. A de Rogério Ferreira, por exemplo, que, como conta, começou a vida aos 44 anos. Hoje tem 72 anos e continua a trabalhar e a descontar para a Segurança Social. “Aqueles vinte e dois anos, os melhores da minha vida, não contaram para nada...” Esteve sempre ligado à agricultura e foi para o norte de Angola plantar café.
Colheu muito mais. Uma família, alegrias e tristezas, três dias cercado numa fazenda de arma na mão. Fez trilhos num jipe blindado, chegou a sair de casa com granadas à cintura e de metralhadora pronta a disparar. Em 1961, a fazenda onde estava ficou a sete quilómetros de dezenas de mortos num dia de horror.
“Andamos há trinta anos à espera que resolvam o nosso problema. Sou espoliado, tiraram-me o que era meu. Mas, sinceramente, não estou a ver o país com hipóteses de resolver o problema.” Rogério Ferreira, além do dinheiro, deixou em Angola um prédio no Uíge, quatro moradias no Norte e um apartamento na Avenida do Brasil em Luanda. Mas trouxe algumas coisas, em caixotes de madeira angolana que, mais tarde, serviram para fazer um móvel de sala que ainda hoje está na sua casa em Almada. Voltou a Angola há oito anos, para matar saudades. “Mas nem documentos tenho. Não posso provar que sou dono de nada, excepto do apartamento. Não tratei de nada. Veja lá que vim com um bilhete de ida e volta. E ainda ali está.”
ÚLTIMO 'ROUND'
A hora de Wing Wa tarda em chegar. “Quando vim para Portugal em 1976”, diz, num português hesitante, “fiquei dois anos no instituto para retornados”. A verdade é que não era um retorno, Wing nunca tinha estado em Portugal. “Sou português, mas de Moçambique”. Nesse dia, mal sai do avião, estranha o frio das manhãs de Janeiro, sente saudade do “povo bom”, da “comida boa” e do “calor”. Vai fazer trabalho de carpinteiro até arranjar emprego num hotel em Cascais. Há quatro anos, a vida acertou-lhe o segundo golpe. No estômago. “O hotel fechou e só então percebi que eles não tinham feito descontos para a segurança social.”
A pensão de invalidez e velhice permite-lhe, aos 74 anos, viver com 151 euros por mês. Dorme num quarto alugado na Margem Sul de Lisboa, em casa de um casal cabo-verdiano, que conheceu quando partilhava um quarto de hospital com o filho, cego depois de ter sido atingido a tiros de caçadeira. “Estou lá há dois anos. A senhora não queria que eu pagasse o quarto, mas eu insisti e pago cem euros.” Wing Wa gasta mais 40 euros para garantir uma refeição por dia ao longo do mês num lar. “O meu plano é trabalhar, aprender melhor português e ir para o lar, mas não para morrer”, revela, algo envergonhado, “Só que não há trabalho, não consigo... E preciso.”
As pernas já não mexem como antes, os olhos que antecipavam os golpes do adversário teimam em não ver tão bem. Mas o pior talvez seja mesmo o ouvido direito.
Em 1956, But Small bateu forte naquela zona, talvez demais. Wing caiu três vezes, perdeu, é certo, mas evitou o KO. Passaram 48 anos e a situação é de novo preocupante. Os golpes têm sido violentos, certeiros, mas o pugilista resiste. Wing Wa ergue os punhos, desfere cinco socos em rajada. Não quer voltar a perder. Não desta vez.
Ricardo Marques
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