Por POR ADELINO GOMES (TEXTOS) E DANIEL ROCHA (FOTOS)
Terça-feira, 27 de Abril de 2004
PÚBLICO - Lançou um livro em Lisboa com as suas intervenções públicas sobre a construção da nação timorense. Qual foi até agora o desafio mais difícil?
XANANA GUSMÃO - Creio que é a mudança das mentalidades.
P. - Como é que os indonésios conseguiram em tão pouco tempo (em termos históricos) inculcar princípios e comportamentos que demoram assim tanto tempo a desaparecer?
R. - Para a conquista dos corações havia dinheiro, havia entrega de zincos, havia estradas. Esta política não se dirigia às populações rurais. Era preciso criar-se uma elite que percebesse que estar com a Indonésia dava muitos benefícios. [Por isso] Não se importavam que o funcionário ou funcionária aparecesse de manhã, assinasse o livro de ponto e fosse embora. Tal qual na Indonésia, onde isso estava implícito na corrupção do próprio sistema. Era preciso que o sistema sobrevivesse a todas as tentativas de mudança.
P. - Apesar de tudo isso, não conseguiram conquistar o coração das pessoas, e sobretudo da juventude. E no entanto, hoje, os jovens que se mostraram tão heróicos na luta de resistência, têm levantado problemas.
R. - Normal, naturalíssimo. A independência não significa simplesmente a saída dos indonésios. A independência seria uma oportunidade para os timorenses estabelecerem um sistema que respondesse aos mais necessitados, dando-lhes emprego. Porque a falta de emprego já então se sentia, mesmo no tempo indonésio... As expectativas da independência iam nesse sentido prático de vida, também. Quatro anos passados sobre o fim da ocupação, as pessoas já dizem "chega", e com razão. As coisas tornaram-se mais sensíveis quando devido à política de unidade e de reconciliação, estão agora na administração pública os mesmos elementos, quase, que antes estavam bem. Este é o factor político que mais instiga, não digo à revolta, mas à frustração.
P. - Isso leva-o a arrepender-se de ter sido o primeiro advogado da reconciliação?
R. - Não. Mas entendo que para além da necessidade de se resolverem os problemas a longo prazo, é preciso resolvê-los também no imediato.
P. - As pessoas cá de longe esperavam que Timor-Leste continuasse a ser um exemplo. Ora, há ideia que se estabeleceu um fosso de gerações, entre a classe dirigente e os jovens, e o resto do povo. Continuo a dizer que o processo é magnífico. Nós recebemos problemas específicos provenientes da situação anterior. O desafio que se nos coloca é resolvê-los. Por mim estou admirado até pela coragem da juventude, pela sensatez do nosso povo, que começou a perceber que a independência não é o cair do maná, mas exige deles mesmos o compromisso de participar. Não foram só as camadas urbanas que exerceram função na administração durante o tempo indonésio. A população também sofreu certo impacto. P. - Nota-o em quê?
R. - Na ideia do Estado-pai, do Estado-mãe, do Estado-tio, do Estado-avô. Devido a essa política de conquista dos corações, davam tudo, quando viam que as Falintil estavam próximas. Havia chefes de suco que eram do PDI (Partido Democrático da Indonésia, da actual presidente Megawatti], que não era democrático mas essa palavra ajudava, a quem eles diziam: 'O que queres para a população? Queres vacas, queres bois, queres cabritos?' Davam tudo. O impacto desta política revela-se agora nessa mentalidade de esperar pelo Estado-avô, Estado-pai, Estado-mãe, e Estado-filho, que são eles... Ora bem: o nosso povo já percebeu. Pede, reclama, mas quando a gente explica eles dizem-nos: 'Não, nós pedimos porque se não o fazemos vocês esquecem-se...'
P. - Na sessão de Reconciliação dedicada aos actores políticos de 1975 (ver PÚBLICO, 15-20 de Dezembro de 2003), senti que a sua geração gostaria de passar o poder, mas não encontrava ainda preparada a nova geração. Já têm os vossos sucessores preparados, ou falta ainda muito tempo?
R. - Já adivinho o que vem a seguir...
P. - Depende da sua resposta. Mas peço-lhe que fale primeiro da geração; depois lá iremos à questão do Presidente...
R. - Sentimos reacções negativas quando a juventude detecta que a independência está a beneficiar quase as mesmas pessoas, quando foi ela que sofreu tanto. Temos muitos jovens - alguns formados, outros não - os quais, como herança de um sistema de ensino muito vulgar, não estão capacitados em termos profissionais, ou de liderança. Há jovens formados com certa idoneidade. O mal é a nossa sociedade não ser suficientemente humilde para reconhecer que outros sabem pensar, fazer, falar. São sempre os mesmos.
P. - Está a dizer, portanto, que o problema é a sua geração não estar preparada para passar o poder?
R. - Sim. Se hoje dizemos de nós próprios que somos inexperientes, como é que podemos exigir experiência às gerações que vêm a seguir? Num prazo entre cinco e sete anos, penso, podem surgir [novos líderes]. E será a sociedade, e não nós, que vai definir quem eles são.
P. - Estamos a poucos dias da redução drástica dos efectivos da ONU, com as consequências que alguns, com o bispo Ximenes Belo, prevêem podem ser graves. Timor vai ficar mais vulnerável?
R. - Não. Fica na mesma. Fazer permanecer ali a ONU não resolve por si os problemas. Com ou sem UNMISET nós devemos ter mais atenção ainda à reconciliação. Com ou sem UNMISET, os problemas de desemprego continuarão. Devemos olhar para o factor segurança num contexto mais largo, no sentido de sabermos como garantir a segurança sem usarmos a força, isto é, de criar condições para que a insegurança não aconteça.
P. - Mas como, num país em que o único recurso para viabilizar o desenvolvimento, o petróleo, está adiado pela eternização das negociações sobre as fronteiras marítimas?
R. - Estamos ainda [só] no quarto ano de confrontação com a Austrália. Se compararmos com a luta anterior, estaríamos agora em 1979...
P. - Mas não é crucial para vós resolver com urgência este problema com o vosso vizinho e amigo?
R. - É e não é. Temos [o campo de] Bayu-Undan, que pelo acordo já feito deve estar a fornecer algum dinheiro dentro de três ou quatro anos. A Austrália tenta explorar já o "Greater Sunrise", só para lhe facilitar a usurpação. Devo recordar que no lado oeste lateral, onde estão [os campos] Laminaria [que até 2003 tinham gerado mais de mil milhões de dólares para a Austrália] e Buffalo, dois jazigos de petróleo num valor mínimo de 1.5 biliões, nós não recebemos um centavo. Se fossem 500 milhões de dólares, eu teria dito: 'Fica lá para vocês. Nós pagamos a Interfet [a força militar australiana que primeiro entrou em Díli durante a violência pró-indonésia de Setembro/Outubro de 1999], pagamos tudo aquilo que vocês tenham gasto em Darwin antes mesmo de terem vindo para cá.' E ainda dizem que foram generosos ao mandarem a Interfet... A minha filha, que agora está cá [em Portugal], já estava a ensinar tétum aos soldados australianos em Melbourne em 1998. A construção das infra-estruturas para o ponto de partida [da força militar] já tinha começado em 98. Estavam só à espera que a comunidade internacional empurrasse. E depois dizem que salvam...
P. - Está desiludido com os australianos?
R. - E não devia estar? Não dá. O "Greater Sunrise" são oito a nove biliões de dólares. Repito: se fossem só 500 milhões eu teria pago. São oito a nove biliões. Seríamos doadores também. Poderíamos ajudar outras pequenas ilhas do Pacífico.
P. - Como é que pensa resolver o problema?
R. - Em todas as minhas saídas tenho falado disto com chefes de Estado e de Governo. Uns dizem "chocante, chocante"; outros "vamos ver"; outros ficam apáticos. Agora é tempo de nós gritarmos: "Não, isso é usurpação". A má fé [dos australianos] é que prevendo que nós íamos pôr o caso no Tribunal Internacional, saíram da sua jurisdição. Que pouca vergonha! Utilizam todos os meios sujos para nos dizerem que não temos direito [à exploração do petróleo que reclama]. Como nos disseram que não tínhamos direito à independência; que estávamos muito bem com a Indonésia. [A Austrália] Foi o único país de cariz ocidental que reconheceu a integração. Porquê? Por causa do petróleo. E depois aparece no fim de eles já terem queimado tudo. Eles que já estavam preparados desde 98! Não é porque somos pequenos que nos vamos calar.
P. - Admite a hipótese de pedir a mediação internacional?
R. - Estou a alertar a opinião pública e os governos amigos. Aos doadores, inclusive, que desde 2000 nos estavam a apontar para as receitas do mar dizendo: 'Não pensem que vão depender da nossa ajuda. Olhem ali para o mar. Assinem já o acordo'. Recebemos todas as pressões possíveis nesse ano e no seguinte.
P. - Agora...
R. - Agora dizem que não vai haver mais "grant"[doação]. E que temos que pensar no "soft loan" [empréstimo suave]. "Soft loan" em termos de quê? Vamos pedir dinheiro e depois pagamos com quê? Se o vizinho grande, poderoso, nos rouba o dinheiro para pagarmos o "grant", vamos ficar endividados. Vamos ser mais um nesta lista de endividados do mundo inteiro, para o Banco Mundial, o FMI, os grandes, dizerem que temos que optar por uma política de redução da pobreza. Quando nós podíamos reduzir a nossa pobreza e reduzir a pobreza dos outros ali ao lado.
P. - Alguma vez pegou no telefone e disse isto mesmo aos homens do poder?
R. - Estamos a criar uma onda de protesto alto, para o mundo perceber. Isto não se faz. Roubam-nos e depois fazem Conferências sobre Transparência, Anti-corrupção. Quer dizer: ensinam-nos a não roubar... Não dá, não dá. Agora começo a perceber certas declarações que ouvia enquanto estava na prisão. 'Não, não: a vossa prioridade é aquela!' E ficamos sem as redes da governação, porque quem fala das nossas prioridades são os outros, não somos nós. Porque esses outros é que dão dinheiro. Se não tivéssemos nada, absolutamente nada, 'olha...que se lixe...., venha o dinheiro'. Mas o problema é que temos algo que nos vai ajudar não só a ter um desenvolvimento sustentável ali como, diria mesmo, com capacidade de apoiar a comunidade internacional, apoiar os outros países. É a solidariedade que devemos a todos os outros povos.
P. - Neste momento há a possibilidade de o general Wiranto vir a ser presidente da Indonésia. Olha com preocupação a possibilidade de ter ao lado esse homólogo, bem como o partido Golkhar de Suharto?
R. - Não. Conheço bem o Wiranto. Sou amigo dele.
P. - Mas também conhece bem o Golkhar.
R. - Conheço. Tenho amigos ali. Não estou preocupado.
P. - Quem é que lhe vai suceder?
R. - A quem?
P. - O senhor vai suceder a si mesmo?
R. - Eu não. Mas acho que é bom que, mesmo três anos antes, se comece a colocar esse problema. O timorense é preguiçoso a pôr o cérebro a funcionar. 'Está ali ele, ele é que faz'. É bom, para que as pessoas comecem a pensar que o Xanana não é insubstituível, que ele não fez tudo bem, que ele também é humano e tem três anos ainda para provar se vai fazer bem ou mal. É saudável para a democracia. Não é fora do tempo. Não aceito é aquele comodismo: 'Ele está aí'.
P. - Achava interessante viver num país em que o presidente fosse um bispo?
R. - O que importa não é ser um bispo, mas o indivíduo em si, o seu carácter, a sua dignidade, a sua capacidade de cumprir os deveres constitucionais, que não são muito grandes, também...
P. - Houve recentemente buscas na mesquita principal de Díli. A polícia disse que havia lá indocumentados. A questão da mesquita [onde vivem duas ou três centenas de muçulmanos de origem indonésia que se queixam de serem discriminadas pela população] parece mostrar que os timorenses não têm tolerância em relação aos outros...
R. - Não, não, não. A minha mulher ainda é australiana. Por causa da lei. Não é pelo facto de ser mulher do Presidente que vamos passar por cima da lei. O que [os muçulmanos indonésios que vivem na mesquita] nos estão a exigir é que os aceitemos já porque ficaram ali. Todos devemos subordinar-nos à lei. Eles reclamam que não fugiram para a Indonésia. Se querem ser timorenses, então submetam-se às leis de Timor. A mesquita foi feita pela comunidade islâmica timorense com o apoio do governo indonésio, claro. Eles são também islâmicos mas de uma outra seita. Ficaram por ali e disseram: 'Isto é nosso.' Não pode ser. De umas poucas dezenas de pessoas em 1999, agora já são centenas. A polícia deparou com a inflexibilidade e mesmo arrogância, do género, 'passem-nos já a certidão de nacionalidade'. A operação fez-se porque havia ali imigrantes ilegais, que entram como turistas e depois ficam.
P. - Dentro de dias passa mais um aniversário do acordo de Nova Iorque [ONU, Indonésia e Portugal] que em 5 de Maio de 1999 estabeleceu os princípios do referendo. Houve críticos que achavam que o acordo deixou de lado a questão da segurança. Não teria sido possível pressionar um pouco mais a Indonésia, evitando talvez dessa forma a violência das milícias, em Setembro?
R. - As relações internacionais não são fáceis. Em Salemba [uma das prisões indonésias em que esteve detido] tentei alertar a comunidade internacional e a própria ONU Conhecíamos bem o carácter dos militares indonésios, a sua doutrina. Prevíamos isso. Mas a nossa voz, como somos pequenos, não é bem percebida. Creio que a comunidade internacional estava à espera da posição da Austrália. Penso que decidiram: 'Vamos deixar esses timorenses provarem o que é que são capazes de fazer.' Como vivemos 24 anos com os militares indonésios, compreendíamos a necessidade deles em mandarem queimar tudo. Se pudessem enrolar as estradas alcatroadas, teriam enrolado tudo. Era aquela frustração política: gastaram muito dinheiro para conquistar os corações dos timorenses e no fim nós não lhes ligámos nada. As infra-estruturas foram enormíssimas. Nós hoje ainda não temos capacidade sequer para pôr zinco nas escolas e clínicas que eles construíram em todo o lado. Pois bem: isso não fez com que o povo amasse os indonésios. [Por isso pensavam] 'Vamos levar isto tudo, porcaria desta gente'. Se fosse só queimar, ainda vá lá, era trabalho deles, nós construíamos depois a nossa nova nação. Mas mataram pessoas, e isso nós não aceitámos. Não foram tantas como no Ruanda, ou no Camboja, mas num povo pequeno, um número mesmo pequeno representa [proporcionalmente] muito.
P. - Diz que compreende a frustração do Exército indonésio. Mas há pouco, quando lhe fiz perguntas sobre a possível ida do general Wiranto [que era o chefe das Forças Armadas Indonésias em 1999] para o poder respondeu que era amigo dele. Acha que o povo indonésio já aceita a independência de Timor?
R. - O povo sim. E os militares. E o Golkhar. Todos.
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