Texto retirado de um grupo de moçambicanos na net:
Não tenho a menor dúvida de que, com revoluções ou não na 'metrópole' Moçambique era independente até aos final dos 70's, ainda muito antes daquela década que mudou completamente o mundo. Conhecemos nomes, conhecemos pelos documentos que vão sendo conhecidos as conversas que extra-muros se faziam mas também conhecemos outra coisa. A realidade. A realidade de que olhos inteligentes cada vez mais nos perscrutavam numa interrogação muda acerca de como permitíamos aquele 'status quo', aquela repartição de riqueza tão brutal e injusta que levava (e atiro para o ar sem receio de estar muito longe dos verdadeiros números...) 5% da população a ser dona de 95% da propriedade privada, a nos finais dos anos dourados antes do 25 de Abril ser ainda raro encontrar alunos 'negros' licenciados ou, simplesmente, um homem de 50 anos que trabalha desde os 10 ou os 15 a ser dono de um automóvel. Quanto muito uma motorizada, e não era para todos...
A independência era uma necessidade e só era viável num quadro de aceitação na comunidade internacional que não iria tolerar uma segunda 'Rodésia'. Iniciada a guerrilha de libertação, a independência sem a Frelimo era uma utopia. E, esta, descia aceleradamente pelo interior do país e as suas acções não iam ficar por muito mais tempo restritas ao interior, as cidades conheceriam mais cedo ou mais tarde o pânico dos atentados e o pânico reinaria. Com tudo de mau que ele traz.
Como vês, nem falo em racismo. Para quê? Nós sabemos que ele existia e a convivência entre raças pouco ultrapassava as formalidades profissionais. Depois houve uma guerra, atrocidades. Só diferentes dum Congo ou duma Sérvia, duma Nicarágua ou dum Afeganistão porque 'nós estivemos lá. E, por isso, há um respeito acrescido por todas as mortes estúpidas que houve, milhares delas de ambos os lados. Sempre excessivas, e ainda mais o são quando tudo se passa na terra que conhecemos e acreditamos ser a nossa para todo o sempre. Com diálogo, com a aceitação da verdade da reivindicação da independência, a guerra não poderia ter sido evitada ou travada logo após o seu início? Sim. Sim, e ninguém me diga que não. Portugal era o nosso país de origem mas a ninguém repugnava a ideia de Moçambique ser independente. Quanto aos cujos avós ignoravam a Beira Baixa ou o que era a Serra da Estrela, esses, os 'negros', tivessem liberdade para responder e milhões de vozes diriam o mesmo: já chega.
Depois amarelos ou azuis, às pintinhas ou com um chapéu a tiracolo, isso é um problema que respeita a quem é independente e tem o direito de gostar ou não da forma como é governado e, se possível, a dizê-lo. Caiu lá um regime comunista cuja força bebeu-a na resistência que nós, portugueses, opusemos à mais legítima reivindicação de todas, a liberdade, o direito a uma identidade própria. Precisaram de apoio nessa luta justa, receberam-no com o catecismo em anexo e a missão de alinhar claramente por um único dos lados da barricada na guerra fria. Também por aí, fomos culpados. E, em 74/75, o clima revolucionário que agitara as cadeias do poder, em Portugal continental, fazia este olhar as colónias como apêndices incómodos - questão a resolver com celeridade. O único interlocutor incontornável era a Frelimo e esta apresentava um argumento de peso: a sua legitimidade extraía-se de ter sido a única a ousar criar um corpo militar para enfrentar aquela ocupação arcaica dum país por outro, baseada na posse primitiva de canhões e caravelas. Para parar a guerra, isso foi aceite. Erro? Claro, mas que outra solução existia?Eternizar o quê e para quê? O resultado seria sempre pior, mais sangue e ódio a pesar na memória.
Nós? Infelizmente somos duas gerações de transição. Aqueles, como tu, que tinham a vida a correr estavelmente e tiveram de encomendar caixotes onde meteram o medo dum desconhecido para toda a família, e os que, como eu, estavam a iniciá-la e, por isso, mais livres e fortes se sentiram para começar a viver outra realidade. O rolo compressor da história pisou-nos, é verdade, mas os relógios do mundo olhavam com impaciência aquele mapa que teimava em dar badaladas ao ritmo de Santa Comba Dão. Como vês, eu não tenho dúvidas acerca dos verdadeiros culpados por esta tragédia, que todos vivemos um pouco. Os filhos da puta que não ouviam ninguém e não permitiam que nada se soubesse. Os cabrões que criaram uma OPVDC que era o terror em subúrbios onde vivia maioritariamente gente de bem. Esses animais que olhavam com rancor (e medo?) um 'negro' que ostentasse sinais de mínima riqueza como um relógio de pulso ("roubaste-o aonde?") ou que tremiam de indignação por um 'preto' tomar banho numa piscina alva, muito alva... Tanta coisa que estava errada e, só em 25 de Abril de 1974 tornou-se visível para uma certa população que olhava, no seu global, só de soslaio para as injustiças que, sob esses olhos, corriam a céu aberto, Eu, inclusivé.
Lamento, acho que escrevi demais. Mas é o que sinto. Recebe um abraço forte de quem também ama Moçambique, Victor.
Carlos Gil
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