No vizinho peninsular, parece haver quem pressinta a possibilidade de acabar com a independência de Portugal, em proveito próprio. As debilidades por que passamos, por culpa dos responsáveis políticos portugueses que nos têm governado nos últimos anos, estão a ser percepcionadas como janelas de oportunidade que, se adequadamente aproveitadas, poderão conduzir ao fim do nosso autogoverno. Do que resultariam vantagens para o Estado espanhol e para regiões autónomas da Espanha (?). Naturalmente, em prejuízo da capacidade portuguesa de defender os interesses daqueles que habitam no país que os nossos maiores nos legaram.
A leitura de um artigo do "La Vanguardia", de 19 de Fevereiro (véspera das eleições legislativas), assim como a de um passo, significativo a este respeito, da entrevista ao "Expresso", de 22 de Janeiro, quando já decorria o debate eleitoral, por Carod Rovira, líder da Esquerda Republicana da Catalunha, revela bem o apetite de estratos da sociedade do país vizinho. Pelo menos de alguns, mas com assinalável expressão e projecção pública. Acabar com a independência de Portugal.
No "La Vanguardia" faz-se uma análise da crise portuguesa, recorrendo ao mais recente eurobarómetro e citando os apenas 38 por cento de portugueses satisfeitos com a sua democracia em comparação com os 57 por cento de média da União Europeia. Refere a deterioração da situação económica e relaciona-a com a desenvolvida economia de Espanha, nosso primeiro parceiro comercial, com a região autónoma da Catalunha em destaque. E conclui: "Uma relação económica que, para além dos governos em funções, deveria traduzir-se numa maior integração política, de perfil multipolar, para poder ter peso numa nova Europa alargada" (federação?).
A entrevista de Carod Rovira ao "Expresso" vai no mesmo tom. Começando por dizer que o seu objectivo final é a independência da Catalunha no âmbito da União Europeia, não se coíbe de afirmar que, na actual situação, não lhe parece possível tal objectivo, mas é preciso concluir (?) esta "península inacabada". Neste processo, "Portugal, que é a fachada atlântica da península, e a Catalunha, fachada mediterrânica da península, têm vivido de costas viradas para o interior da península e de uns para os outros. Só podemos acabar com isto conhecendo-nos (...) Existem muitas questões na Península Ibérica que só se resolverão satisfatoriamente se forem tratadas com uma mentalidade peninsular." Como existem outras que necessitam de mentalidade europeia e até mundial, assim como muitas outras que exigem mentalidade nacional, acrescento eu. Carod Rovira termina: "Madrid não pode decidir sozinha em tudo, devemos passar de uma concepção unipolar do Estado para uma outra multipolar, que passe por Lisboa, Barcelona, Bilbau, certamente por Sevilha, e juntos poderemos acabar de alguma forma esta península que nunca foi concluída".
Embora terminando por uma frase suficiente ambígua para conter todas as interpretações que lhe convenham (nomeadamente a transformação da Península numa Confederação de estados ibéricos independentes), ela também pode ser lida como um cenário de transição com uma Península federal, centrada em Madrid (uma vez que reconhece não existirem condições para a Catalunha atingir a independência). Isto corresponderia à abdicação de Portugal dos atributos de soberania que possui (e que Rovira tanto deseja para a Catalunha, o que é uma flagrante contradição), com tudo o que tal significaria como reforço da instabilidade conflitual na península. Ao mesmo tempo, talvez sem dar conta, atiça os impulsos centralistas de Madrid sobre as regiões periféricas peninsulares, onde verdadeiramente se produz a riqueza, e que são as reais detentoras do potencial estratégico natural, dado o seu acesso ao mar.
A grande lição de tudo isto é que a actual situação de crise económica, se não for resolvida atempadamente, tornar-se-á numa muito séria ameaça à independência de Portugal, além de poder vir a traduzir-se em roturas sociais profundas, de repercussões tremendamente negativas no nosso bem-estar e estabilidade. A sua solução passa pela substituição do actual modelo económico-social, já esgotado, por outro bem mais rigoroso, susceptível de exigir, pelo menos temporariamente, talvez num largo período, sacrifícios de todos nós.
Os responsáveis políticos agora eleitos terão de seleccionar o essencial e descartar o acessório; agir com lucidez e com despreendimento relativamente à sua continuação no poder; e ter por ambição ficar na História como regeneradores de Portugal, e não como eventuais coveiros da sua independência, se não imediata e formal, pelo menos a prazo e de facto.
A racionalização dos instrumentos da acção do Estado é uma das primeiras, senão a primeira decisão a tomar. Em todos os sectores da Administração.
Por exemplo, no que se relaciona com o modelo de segurança e defesa de Portugal, que é o domínio sobre o qual penso poder pronunciar-me, haverá que implantar uma estrutura para a segurança do Estado português que permita, com eficiência: 1) avaliar permanentemente as ameaças de todo o espectro que nos podem afectar (tanto as não militares como as militares); 2) analisar a cada momento a situação estratégica envolvente, e propor as modalidades de acção convenientes aos órgãos de decisão política, especialmente aos órgãos de soberania; 3) formular um Conceito Estratégico Nacional que não respeite apenas às matérias da Defesa, mas envolva todas as actividades do Estado e sirva de directriz orientadora/inspiradora para a Nação.
Isto exigirá: serviços de informações eficazes, e a criação de um órgão de staff e outro de conselho que apoiem os órgãos de soberania e os responsáveis políticos; a reformulação das competências dos órgãos de soberania, nomeadamente do Presidente da República que, sendo sempre eleito pela maioria do povo soberano, deve ter voz activa em todas as decisões que ameacem a independência nacional (de que é o supremo garante), qualquer que seja o seu âmbito, e não apenas em assuntos de natureza militar, hoje muito menos presentes e menos frequentemente decisivos do que os restantes.
Quanto às capacidades na Defesa, deverá ser urgentemente alterado o modelo de Forças Armadas que está a ser implantado - característico do passado -, transformando-o num modelo ágil (em vez de pesado), ajustado às necessidades estratégicas com que nos defrontamos hoje e no futuro visível, quer nos espaços de interesse estratégico imediato e próximo, quer nos afastados (e não a necessidades estratégicas da guerra fria), e racionalizado (atendendo de forma rigorosa às prioridades).
Isto exigirá a resolução dos problemas que paralisam as Forças Armadas (pessoal, militar e civil, e orçamentos de funcionamento e de manutenção), a rearticulação dos seus comandos e dispositivos com vista à respectiva racionalização, e a revisão da Lei de Programação Militar. Nesta, deverão ser cancelados os programas de segunda prioridade (e dispendiosos) - segunda esquadra de F26 e respectivo improvement, substituição dos P3 e substituição dos submarinos. E acelerada a execução dos restantes programas, nomeadamente patrulhões (incluindo antipoluição), navio polivalente logístico, transporte aéreo táctico e estratégico, busca e salvamento, radares de defesa aérea, helicópteros para o Exército, substituição das viaturas blindadas de rodas e das espingardas G3, e estabelecimento de sistemas antiaéreos para a defesa de áreas sensíveis.
Neste primeiro e urgente esforço, deverá ainda ser revista a legislação de segurança e militar, como a Lei de Defesa Nacional.
É indispensável um esforço de todos. A começar pelos responsáveis políticos. Com demagogia, tibieza e falta de lucidez e de espírito patriótico, não será possível afastar as graves ameaças que se colocam à nossa independência nacional. Só com verdade, coragem, visão do interesse nacional e patriotismo, haverá possibilidade de o conseguir. Todos seremos julgados pela História.
*General
PÚBLICO - 26.02.2005
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