"Agi de acordo com a minha consciência". É com esta taxativa frase que Carlos Fabião encerra o seu primeiro embate com António Spínola, na Guiné, que deixou cicatrizes que não mais se fechariam. A partir do 11 de Março [1975] Spínola vai mesmo considerá-lo um "traidor",
embora nunca o tivesse posto ao corrente das suas intenções golpistas. Pelo contrário, desde que Fabião regressou da Guiné passou a tratá-lo displicentemente, ignorando de modo altivo que, desde 16 de Outubro de 1974 ele era seu superior, pois fora escolhido pelos camaradas de armas para chefe do Estado-Maior do Exército.
A escolha de Fabião para governador militar da Guiné foi natural, na opinião dos que rodeavam Spínola. Ele era, sem dúvida, o militar português que melhor conhecia aquela região, cultural, política e militarmente falando. Desde a sua primeira missão, em 1955, que a elegera como terra adoptiva. Foi tendo em conta esse conhecimento profundo da realidade da Guiné-Bissau que Spínola nomeou Fabião comadante das milícias locais, um exército para-militar de nove mil homens. Mas a "africanizarão da guerra", projecto estratégico de Spínola, era irrealizável e Fabião, embora não lhe o diga formalmente, sabe que a prazo a força que formou será agitada pelo ideário nacionalista.
Em Maio de 1974, foi recebido em Bissau cordialmente, mas sem efusão. Estabeleceu contacto com as "forças vivas" e preocupou-se com gestão diária dos assuntos locais. Fabião era a base de um triângulo político cujos vértices são Spínola, Mário Soares e Melo Antunes.
Cada um deles tem o seu programa de descolonização e se para os dois últimos é claro que ele desembocará na independência, mesmo se divergem nas vias, já Spínola "delira" - a expressão é de Melo Antunes - com um império confederado luso-afro-brasileiro, de que ele seria o presidente.
Daí que queira fazer da Guiné-Bissau um teste à sua popularidade. Ele julga, cegamente, que as populações africanas lhe estão profundamente gratas pelo desenvolvimento que trouxe à região. Convenceu-se que num
plebiscito reconhecê-lo-ão como o "mais velho" e quer arrancar com uma campanha de popularidade. Envia 20 mil posters em pose de general para serem distribuídos pelas tamancas e edifícios públicos, para que todos saibam que é nele que todos devem votar. Só não foi um engano trágico porque Fabião "nem abriu" os caixotes onde vinham os posters.
A sua preocupação era a garantir a ordem pública e que a
desmobilização das forças portuguesas se fizesse com dignidade e respeito mútuo entre os antigos beligerantes. "Numa situação fluida como aquela não se podem fazer planos a prazo. Gere-se a situação ao dia a dia ou de outro modo paralisa-se tudo e agravam-se ainda mais os problemas". Identificá-los e propor-lhes uma solução rápida foi a sua atitude e considera que soube ter o "bom senso" necessário para levar a bom porto a missão.
"O primeiro caso que tive que resolver foi o da PIDE-DGS" e conta que mal pôs pé em terra os dirigentes sindicais lhe pediram uma reunião, reclamando não só a extinção da polícia política, como a entrega das "fichas", para identificação posterior dos "bufos".
Foi ver o que havia e percebeu que não havia unicamente informação de natureza política. A delação incluía sobretudo aspectos escabrosos da vida pessoal dos visados, das relações familiares íntimas aos contactos sociais. Percebeu que o estilo de actuação da polícia secreta visava principalmente a chantagem. Na reunião seguinte deu conta aos interlocutores do conteúdo geral das fichas tão fortemente exigidas. Fez-se uma pausa de reflexão e um porta-voz dos sindicalistas resumiu o pensar geral: "Queime tudo sr. brigadeiro". Fabião acedeu, mas não o fez. Empacotou todo o arquivo e enviou-o para Lisboa, esperando que esteja agora na Torre do Tombo, para consulta dos historiadores.
Quanto ao resto, tentou que os incidentes da ordem pública não tomassem proporções incontroláveis e teve em atenção especial os crimes de sangue, pois dado o sincretismo religioso das populações podiam degenerar em conflitos étnicos. Houve mesmo um crime com contornos de bruxaria, e para o deslindar recorreu à Polícia Judiciária, que respondeu de imediato. Ao fim de uma semana estava identificado o autor do crime e a sua motivação interesseira.
Quando no dia 10 de Setembro de 1974, sem grande pompa, se fez a passagem de poderes, pois para o PAIGC a independência fora proclamada no ano anterior em Madina do Boé, Fabião e a mulher, Margarida, puderam chamar os três filhos e anunciar-lhes que regressavam à casa do Largo de Santa Martinha, sem qualquer peso na consciência.
PÚBLICO - 20.03.2005
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