HÁ-DE estar ainda fresco na memória de quantos o viram na Rádio Televisão Portuguesa, um programa nocturno que reuniu numa luzidia assembleia, um conjunto de ex-ministros das Finanças de Portugal, em debate com políticos, com economistas e com sábios em matérias afins.
No espírito mantenho o sentimento de perplexidade com que vi o Primeiro-Ministro e os seus camaradas socialistas baterem na testa com a expressão do maior espanto, da maior surpresa, do maior pasmo, do maior assombro, ao ser-lhes comunicado pelo Governador em exercício do Banco de Portugal, ter encontrado nas contas públicas um défice, actual, de 6,83 por cento do P.I.B.
Afinal, onde tem estado a viver esta gente?
Esta gente é parva, ou tem estado ausente em qualquer país longínquo, sem notícias de Portugal?
O que têm andado a fazer os 230 deputados que ornamentam o Palácio de S. Bento e que é suposto analisarem, discutirem e votarem, ano a ano, os orçamentos e as contas do Estado?
O que fizeram os juízes-conseIheiros do Tribunal de Contas, que é suposto terem analisado, verificado e julgado as contas anuais do Estado?
O que têm feito os sucessivos governadores do Banco de Portugal, guardião do que resta do nosso ouro, da nossa credibilidade, da nossa solvência e da administração dos valores financeiros do país?
O que têm feito os poderes públicos representados nas sucessivas magistraturas que vêm exercendo os seus mandatos desde Abril de 1974?
Onde esteve e o que fez toda esta gente ao longo dos últimos trinta anos, para não se aperceber do óbvio?
Pela simples percepção do triste espectáculo que a Rádio Televisão Portuguesa ofereceu aos que a sintonizaram, algumas conclusões se tornam evidentes:
Que os telespectadores foram tratados pêlos intervenientes como débeis mentais, sendo necessário criar à economia a imagem antropomórfica do sujeito que engorda ou emagrece 6 quilos, sendo cada quilo equivalente a um ponto percentual do défice.
Que eles próprios se trataram uns aos outros como trafulhas ocupados, quando no poder, em esconder ou disfarçar o défice, iludindo a ingenuidade dos que, na oposição, acreditavam piamente, como anjinhos, na contenção do mesmo défice.
Que todos eles discutem, sem se entenderem, sobre as teorias macro e micro económicas, os efeitos da globalização, o papel interveniente do Estado e, finalmente, a evolução do estado de sanidade das finanças públicas;
Que nenhum deles faz a menor ideia de como alcançar o reequilíbrio das contas públicas portuguesas, nem se disponibiliza para o teorizar e muito menos para o executar.
Que no meio de todo este imbróglio, a comunicação social — desde as televisões aos jornais, ditos de referência (qual referência?) — que crucificaram ferozmente Santana Lopes e os seus ministros pelas «trapalhadas» cometidas, metem a viola no saco em profundo silêncio e total omissão, perante «trapalhadas incomensuravelmente maiores» do actual Primeiro-Ministro Sócrates é dos titulares tias pastas do seu Governo.
E perante tudo isto, não se questionam os portugueses, como foi possível que um partido como õ socialista, se tenha apresentado em campanha de legislativas com um candidato a Primeiro-Ministro, que ignorava o montante do défice real, quando toda a gente já o situava entre 5 e 6 pontos percentuais do P.I.B. e, nessa sacrossanta ignorância, se atreveu a prometer aos eleitores este mundo e o outro, com aumentos salariais, melhoria de pensões de reforma, auto estradas
isentas de portagens e um choque tecnológico que Deus permita se desfaça em nada, porque, se chega a vir, com todo o destrambelhamento que nesta gente se patenteia, por simples colisão, atira de vez com o país para a sucata.
Razão profunda tinha o arguto Eça de Queirós quando se referia ao Portugal do seu tempo — igual ao de hoje — como um País de opereta.
Como País de opereta se tem comportado Portugal desde 1820, quando os do Sinédrio, nas nuvens da mais irrealista utopia, se convenceram e convenceram outros, de que com uma Constituição escrita, o País ia passar a ter felicidade e prosperidade a jorros, alegria, fartura e riqueza, como se do simples papel impresso de uma Constituição pudesse resultar, sem mais, o bom senso político e administrativo, a inteligência governativa, o empenho no trabalho, o aumento da produtividade, o entendimento dos direitos e obrigações cívicas, ò somatório de princípios, de valores, de ideais e de qualidades, enfim, que condicionam e regem o progresso das Nações.
Já em texto de 1882, em «As Farpas», a dupla Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, escalpelizava o problema do défice, ali escrevendo:
«Fazem-se empréstimos para suprir o imposto, criam-se impostos para pagar os juros dos empréstimos, tornam-se a fazer empréstimos para atalhar os desvios do imposto para o pagamento dos juros e neste interessante círculo vicioso, mas ingénuo, o défice — por uma estranha birra, admissível num ser teimoso, mas inexplicável num mero saldo negativo, em uma não existência, — aumenta sempre através das contribuições intermitentes com que se destinam a extingui-lo; já o empréstimo contraído, já o imposto cobrado».
Em 1926, numa situação de descrédito financeiro como a actual, com um défice incontrolado, o General Gomes da Costa desembainhou a espada e, à frente do exército, marchou de Braga para Lisboa, travando o descalabro da partidocracia, em que o País se atolava.
Em 1928, perante a humilhante situação de recusa da Sociedade das Nações em avalizar um empréstimo internacional que Portugal pretendia contrair para o saneamento das finanças públicas, o Governo da ditadura chamou à pasta das Finanças um professor universitário de Coimbra que, em artigos de imprensa —jornal O Imparcial — propunha o reequilíbrio financeiro do País pelos seus próprios meios, sem recurso a créditos externos.
Na tarde do dia 27 de Abril de 1928, o tal professor de Coimbra tomava posse da pasta das Finanças, afirmando:
«Sei muito bem o que quero e para onde vou!»
E foi. O País acompanhou-o.
Doze anos depois, em 1940, as finanças estavam equilibradas, a economia recuperada, o País internacionalmente credibilizado e a Nação comemorava, condignamente, o seu duplo centenário: da nacionalidade, 800 anos — 1140-1940; da restauração, 300 anos — 1640-1940, com o lançamento de um surpreendente plano de fomento que dotou Portugal de uma rede de estradas condigna para a época, de edifícios escolares, vias férreas, reapetrechamento do Exército e da Marinha, lançamento da Força Aérea, criação da aviação comercial, tudo com rigor, sobriedade, e disciplina, sem derrapagens financeiras e pago a pronto, com boa moeda portuguesa.
As finanças públicas de Portugal atravessaram, incólumes, a guerra mundial de 1939-1945, que deixou a Europa de rastos, num caos de destruição e de crise, cada vez mais sólidas e, em 1968, quando o professor de Coimbra morreu, deixava uma situação em que se discutia o que fazer ao «super havit» e não ao défice, créditos firmados, finanças estáveis e o Banco de Portugal a abarrotar em ouro.
À data da sua morte, foi-lhe encontrada uma conta pessoal cujo saldo era de 25 mil escudos. O seu património reduzia-se à casa herdada dos pais, no Vimieiro, em Santa Comba Dão. Nunca teve contas no estrangeiro, nem viu beneficiada a sua situação patrimonial ou económica à custa do exercício de um poder, quase absoluto, que lhe foi confiado entre 1928 e 1968.
Chamava-se António, de seu nome completo, António de Oliveira Salazar.
O segredo do seu êxito?
A honestidade, a seriedade, a força de vontade e a convicção do discurso e dos actos com que convenceu a Nação da necessidade, imprescindível, de Produzir e Poupar, fazendo aceitar por todos o princípio patriótico de Tudo pela Nação, Nada contra a Nação.
O País escutou, viu, acreditou.
Concentrou-se, consciencializou-se, produziu e poupou.
Assimilou que tudo havia a fazer pela Nação e nada contra ela.
Tudo se inverteu desde Abril de 1974.
Ao País foi apresentado, como redentor, um novo plano de vida, onde o ócio prevalecia sobre o trabalho, os direitos sobre as obrigações, o gastar sobre o ganhar, o ter sobre o ser, o falar sobre o fazer.
Desacreditaram-se os conceitos de Nação, de solidariedade, de esforço, de sacrifício e fez-se deste país, uma tribo de dez milhões de egoísmos.
Com o reaparecimento da partidocracia, regressou o falató-1 rio inócuo e improdutivo, o compadrio político, a sobreposição de interesses pessoais e partidários, aos interesses nacionais.
Com o abandono do Ultramar e o regresso das populações em situação de miséria material e moral, foi-se grande parte das reservas de ouro e divisas e substancial fatia de receitas públicas.
Com a adesão à Comunidade, depois União Europeia, gastaram-se improdutivamente milhões de milhões recebidos para reconversão e não se reconverteu nada.
Perdeu-se a frota mercante, tornou-se obsoleta a de guerra, o equipamento e o armamento, nacionalizou-se, desnacionalizou-se, privatizou-se e gerou-se, em desatino, o défice crónico.
Por imposição da Europa arrancaram-se olivais e vinhedos, abateram-se barcos de pesca, liquidaram-se culturas e lavouras.
Gastou-se descontroladamente em obras sumptuárias e improdutivas, exposições inúteis e estádios dispensáveis de pontapé na bola.
O défice a crescer:
Sem outros meios para o fazer definhar, vendeu-se património.
Os privados, com o mau e desregrado exemplo do Estrado, entraram a gastar descontroladamente o que tinham e depois o que não tinham, em bens tão essenciais e produtivos, como casas de praia e de férias e automóveis de gama alta.
Hoje, quem percorre as ruas das cidades e as estradas do País, convertidas em auto estradas, ICs e IPs, fica assombrado com a quantidade de Mercedes, Audi e BMW, últimos modelos, que nelas rolam.
O que não quer dizer que os seus possuidores sejam seus proprietários e menos ainda que tenham os impostos em dia.
Tornou-se moda adquirir e ficar a dever, gastar sem ter,. despender sem pagar.
Com o Estado a dar o mau exemplo e os particulares a segui-lo, deslumbrados, numa generalizada inconsciência.
Tudo isto, quando está ao alcance de qualquer cidadão médio que mesmo sem saber economia tenha um mínimo de senso comum, que gastar mais do que se tem e se ganha, mais cedo ou mais tarde, dá mau resultado.
Como se tudo não bastasse, os bancos, sôfregos, incitam o povo a gastar por conta de salários que ainda se não receberam, a ir de férias para destinos exóticos e longínquas paragens, descontraidamente, pagando depois, a contrair empréstimos, a gastar.
Os meios de comunicação estão cheios desta publicidade ostensiva.
Onde está, pois, a razão de ser da surpresa desta gente no disparar incontrolado do défice, perante tal condicionalismo público e notório?
Precisam meter explicador?
Só por profunda insanidade mental, crassa ignorância, ou incrível estupidez, alguém poderia sequer duvidar que se chegaria a este resultado.
E que isto é assim, toda a gente sabe, sem meter no cesto as autarquias locais endividadas até aos cabelos, que fariam o défice, assim apurado, disparar para os dois dígitos.
A situação é esta, fácil de prever.
Só os parvos e os muito distraídos, a não entendiam.
Agora, se a não sabem resolver, estudem o que o António fez, disse, escreveu e ensinou.
Ainda devem haver pêlos alfarrabistas algumas das Sebentas de Finanças Públicas, por onde ele ensinou e algumas gerações aprenderam, com utilidade.
Leiam a sua doutrina e os seus discursos.
Estudem, aprendam, perguntem ao António.
A menos que prefiram seguir ás indicações de alguns populares que as televisões e os jornais registaram, declarando e garantindo, convictamente, que, com a vitória do Benfica no campeonato, a produção vai aumentar, o trabalho rentabilizar-se, o País progredir, o produto subir, a economia melhorar.
*Advogado
O DIABO – 31.05.2006
Recent Comments