Estariam Amílcar Cabral e o PAIGC, ainda no início dos anos 70, abertos a uma solução negociada para a guerra na Guiné, na base de uma solução comunitária, ou mesmo federal, que envolvesse Portugal, a Guiné e Cabo Verde? Declarações nesse sentido, praticamente desconhecidas até à data, e a que o «DN» teve acesso, parecem confirmar claramente esta hipótese.
Em Outubro de 1971, Amílcar Cabral, dirigente máximo do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), está em Londres, na sequência de um périplo europeu de sedução ao Ocidente (pouco depois de ter sido recebido, no Vaticano, pelo papa Paulo VI, com outros dirigentes independentistas da África portuguesa).
Na capital britânica, o secretário-geral do PAIGC concede uma entrevista a duas publicações de exilados portugueses - Polémica e Anticolonialismo, representadas, respectivamente, por José Manuel Medeiros Ferreira e por Pedro George -, no decurso da qual fala da independência da Guiné e de Cabo Verde, num quadro de uma comunidade lusófona. Que disse Amílcar Cabral, dois anos antes da declaração unilateral de independência (24 de Setembro de 1973), quando interrogado sobre «o futuro das relações entre a Guiné e Portugal»?
Disse o seguinte: «Se porventura em Portugal houvesse um regime que estivesse disposto a construir, não só o futuro e o bem-estar do povo de Portugal, mas também o nosso, nós não veríamos nenhuma necessidade de estar a fazer a luta pela independência. Mas em pé de absoluta igualdade. Quer dizer, se o presidente da República pudesse ser, quer de Cabo Verde, da Guiné, como de Portugal; se todas as funções estatais, administrativas, etc., fossem igualmente possíveis para toda a gente, nós não veríamos nenhuma necessidade de estar a fazer a luta pela independência, porque já seríamos independentes, num quadro humano muito mais largo e talvez muito mais eficaz do ponto de vista da História».
Publicada em Dezembro de 1971 na revista Polémica (Genebra, Suíça), a entrevista de Amílcar Cabral poderia representar um passo táctico, propagandístico mesmo, de um chefe que desejava afirmar a luta do seu movimento independentista, nomeadamente no Ocidente. Interrogado sobre a interpretação das declarações de Amílcar Cabral, o ex-presidente de Cabo Verde, Aristides Pereira (e sucessor de Amílcar Cabral na liderança do PAIGC, após o assassínio deste dirigente), disse ao DN: «Não se tratava de uma declaração táctica ou meramente propagandística, correspondia ao nosso pensamento».
A entrevista de Amílcar Cabral contém outros passos de interesse, no sentido do precisar do «pensamento» dos dirigentes principais do PAIGC. Disse Amílcar: «Como sabe, nós temos uma longa caminhada com o povo de Portugal. Eu estou aqui falando português, como qualquer outro português, e infelizmente melhor do que centenas de milhares de portugueses que o Estado português tem deixado na ignorância e na miséria».
E, depois da afinidade linguística, o líder guineense refere outras, históricas e culturais: «Nós marchamos juntos; e, além disso, no nosso povo, seja em Cabo Verde, seja na Guiné, existe toda uma ligação de sangue - não só histórica, mas também de sangue - e fundamentalmente de cultura com o povo de Portugal».
Depois de referir a possibilidade de «uma independência num quadro humano muito mais largo e talvez muito mais eficaz do ponto de vista da História» (sublinhado nosso), Amílcar aborda a questão mais profundamente ideológica das condições da construção desse quadro ideal, regressando ao refrão comum a todos os dirigentes independentistas.
«Nós somos povos africanos, ou um povo africano», sublinha Amílcar, «lutando contra o colonialismo português, contra a dominação colonial portuguesa. Nós estamos absolutamente convencidos de que, se em Portugal se instalasse amanhã um Governo que não fosse fascista - mas fosse democrático, progressita, reconhecedor do direito dos povos à autodeterminação e à independência -, a nossa luta não teria razão de ser.»
Quinta-feira, 24 de Setembro de 1998 - José Manuel Barroso, in «Diário de Notícias»
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