Joaquim Aguiar
Entre 1971 e 1972, a história do fim do regime do Estado Novo poderia ter seguido um curso diferente do que veio a ter. Bloqueado entre as forças da continuidade, que não aceitavam a amputação colonial, e as forças da modernização, que precisavam de consolidar as redes empresariais no Atlântico Sul – Angola e Brasil, Moçambique e República da África do Sul, mas também Guiné, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe para o petróleo e para apoio às rotas marítimas – como preparação da independências das colónias, o regime do Estado Novo não conseguiu estabilizar a transição da agonia de Salazar (de 1968 a 1970) para a afirmação do seu delfim e sucessor Marcelo Caetano. No ponto de ligação entre estas duas linhas em confronto encontrava-se um protagonista menor, sem relevo na arquitectura institucional do regime (sempre dominado pelo Presidente do Conselho), mas com um papel conjuntural decisivo porque era o factor de arbitragem entre conservadores e modernizadores, entre os representantes das forças militares e os grupos dispersos das forças empresariais e elites tecnocráticas, entre os vigilantes do autoritarismo e os defensores da abertura democrática e das negociações para a descolonização. As circunstâncias conjunturais faziam deste protagonista menor, como personalidade e como peso político, a variável determinante do futuro, quando se aproximava a oportunidade da eleição presidencial em 1972.
Américo Tomás tinha declarado que não tencionava recandidatar-se a um terceiro mandato. Estava cansado, um mandato de sete anos era um período longo. Era a ocasião para a mudança decisiva, que permitiria abrir um novo horizonte para as questões conjuntas da abertura democrática, da independência das colónias e do desenvolvimento económico. Mas também era a ocasião para a inovação institucional no regime, com a candidatura presidencial de Marcelo Caetano. O chefe do Governo que se libertaria das suas responsabilidades executivas (transferidas para um elemento da nova geração com competência nas matérias da economia) passaria a ser o Presidente da República que se concentraria nos dois objectivos centrais que bloqueavam o regime: a abertura para um sistema de partidos e as negociações, internas e externas, para a independência das colónias em fases calendarizadas. Não foi o único cenário estudado que permitia chegar aos mesmos objectivos. A candidatura de um chefe militar orientado para as negociações da independência das colónias seria compatível com a continuidade de Marcelo Caetano como Presidente do Conselho, concentrado nas áreas do desenvolvimento económico, da diplomacia e da abertura política.
Cenários inúteis porque, afinal, Américo Tomás concluiu que não estava cansado, estimulado pelas solicitações que muitos lhe faziam para que continuasse o seu sacrifício. Conscientes da mudança que estava em gestação, as forças da continuidade actuaram sobre a variável determinante, aquela que deveria deixar aberto o espaço por onde se processaria a transformação do regime. Na última oportunidade em que se poderia evitar a ruptura, a pretexto da eleição presidencial, os protagonistas do Estado Novo escolheram a direcção errada. Legalista e temeroso da desordem, Marcelo Caetano submeteu-se ao capricho de Tomás. Impulsivo mas inconsequente, António de Spínola ficou à espera, com a espada no bolso. Fechou-se a última janela de oportunidade e caíram todos.
Trinta e três anos depois, reproduz-se o mesmo dilema entre a continuidade e a mudança a pretexto de uma eleição presidencial. Também se trata de uma última janela de oportunidade de correcção de rota antes de o colapso do Orçamento de Estado, o esgotamento da economia e a impossibilidade de sustentar o financiamento das políticas sociais trouxerem para o primeiro plano a degradação dos comportamentos políticos, a generalização da corrupção e a captura dos serviços públicos pelos seus funcionários. Não serve de muito dizer-se que a democracia encontra sempre soluções para as suas dificuldades, pois tem sido o funcionamento dos dispositivos democráticos que tem legitimado a rota que conduz ao bloqueamento e à ruptura. Quando não há dirigentes políticos que digam a verdade e que orientem a inovação, a democracia torna-se circular, com os candidatos a proporem o que os eleitores querem ouvir e os eleitores a votarem de modo a que nada tenha de mudar no que se tornou habitual.
A situação de Portugal é muito mais difícil e complexa do que era em 1974 porque o nível de modernização português é, comparativamente, muito mais baixo. Houve crescimento, alimentado por recursos externos e pelas políticas distributivas internas, mas não houve desenvolvimento que tornasse esse crescimento sustentado. É porque não houve desenvolvimento que não houve modernização, o que se reflecte na degradação da balança comercial e na perda de competitividade ou de atractividade do investimento externo. Com o extraordinário nível de défice orçamental continuado e com a descida da taxa de juro no contexto da entrada no sistema de moeda única europeia, deveria haver crescimento, desenvolvimento e modernização. É porque não há nada disso que não se pode ignorar que se está numa crise de vitalidade e de rendimentos decrescentes, na vizinhança de uma descontinuidade. Intensificar os estímulos já não inverte a tendência descendente, antes a acentua.
Como Tomás, Soares anunciou que estava cansado e que bastava de responsabilidades institucionais. Como Tomás, Soares sabe que é o último elo da continuidade, aquele que quer impedir o reconhecimento do óbvio. Como ao lado de Tomás, também ao lado de Soares estão as forças apostadas na continuidade, que querem fechar a última janela de oportunidade para a correcção de rota, desde que isso lhes prolongue por alguns dias os privilégios que apropriaram e que não justificaram. Compreende-se o desespero, mas não se pode ignorar que foi Mário Soares, no fim do seu segundo mandato, em 1995, quem entregou (de modo deliberado e sistemático, mas inglório) todos os poderes institucionais aos protagonistas do Partido Socialista e que foram eles que conduziram a sociedade, a economia e o sistema político ao ponto de ruptura actual. Entregar ao mesmo pecador a tarefa da redenção e a atribuição das penitências não é só uma imprudência, é uma inutilidade.
Revista Atlântico de Outubro de 2005
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