Luciano Amaral
Caudilhismo e constitucionalização
O hábito de aglomerar todos os regimes que reprimem a liberdade política, desde a Itália de Mussolini à Indonésia de Suharto, sob a designação genérica de “fascismo” é uma mania empobrecedora, que se torna perniciosa mesmo para a comparação de regimes onde a familiaridade é maior. Entre a Alemanha Nazi, a Áustria de Dolfuss, o Portugal de Salazar ou a Espanha de Franco as diferenças são muitas vezes maiores do que as semelhanças. Precisamente, estes dois últimos casos ilustram bem a questão. Compreender as suas diferenças ajuda-nos a analisar também as diferenças nas respectivas passagens do autoritarismo para a democracia. Um dos aspectos onde essas diferenças mais abundaram foi no domínio da organização económica, e tanto a herança dos regimes autoritários quanto a forma como com ela lidaram as democracias que lhes sucederam permitem-nos entender melhor o actual estado das duas economias.
Caudilhismo e constitucionalização
Apesar da natureza autoritária tanto do salazarismo como do franquismo, os pontos de divergência entre os dois regimes são inúmeros. Salazar nunca se definiu como caudilho (uma espécie de versão latina do führer) nem sequer como ditador. Antes pretendeu ver-se como o Primeiro-Ministro (Presidente do Conselho de Ministros, na linguagem do regime) de um Estado de Direito. A Constituição de 1933, naquilo que tem de homenagem ao liberalismo político, nunca foi uma simples máscara escondendo a ditadura salazarista. Salazar e os governos do regime foram efectivamente limitados pela lei e sempre sentiram necessidade de justificar os aspectos mais negativos da sua acção (como as limitações às liberdades políticas, a repressão ou a censura) através do direito.
Franco também quis dar uma aparência de constitucionalização ao seu regime, mas nunca ao ponto de o dotar de uma efectiva constituição. O ersatz ersatz espanhol de constituição sofreu a designação de Leyes Orgánicas, as quais sempre deixaram uma margem significativa para o arbítrio do Caudillo de España por la Gracia de Dios, expressão de que Franco nunca prescindiu para se autodenominar. Mesmo a repressão política em Espanha atingiu uma escala absolutamente desconhecida em Portugal: durante o franquismo, terão sido presas cerca de 50 mil pessoas e executadas cerca de 30 mil, números que vulgarizam a violência salazarista. A origem do franquismo na Guerra Civil de 1936-1939, onde se estima que tenham morrido cerca de 300 mil pessoas, ajudará certamente a explicar isto.
Eis, portanto, dois regimes cuja natureza (dentro da família autoritária) foi muito diferente. Um arbitrário e de violência extrema, outro constitucionalizado e de violência (relativamente) moderada. A relação de cada um com a actividade económica não podia escapar a tais dissemelhanças.
Salazar sempre pretendeu estabelecer regras claras e previsíveis, a partir das quais os agentes económicos pudessem desempenhar a sua actividade. Ao contrário da lenda, nunca foi contra o “desenvolvimento” ou o “crescimento económico”. Apenas não adoptou as políticas de tipo “desenvolvimentista” então em voga, particularmente no Terceiro Mundo. Não quer isto dizer que o arbítrio governamental estivesse ausente do salazarismo. Basta pensar no caso do condicionamento industrial, um mecanismo de licenciamento de extrema complexidade burocrática e dependente da decisão última do governo. Mesmo assim, o arbítrio sempre foi entendido mais como supletivo do que como impositivo. Um dos aspectos onde a pretensão de oferecer regras claras mais se fez sentir foi no domínio fiscal e monetário: era regra constitucional os orçamentos serem equilibrados e a emissão monetária estava também sujeita à regra que a fazia depender das disponibilidades em divisas do Banco de Portugal. A verdade é que, ao longo da nossa história económica, apenas durante o quase meio século do Estado Novo foi possível manter o equilíbrio orçamental e a inflação controlada. Para além disto, Salazar sempre esteve consciente da necessidade de uma certa abertura económica internacional. Mais uma vez ao contrário da lenda, nunca foi partidário da autarcia. Algo particularmente visível a seguir à II Guerra Mundial, quando Portugal participou nos movimentos de cooperação internacional mais importantes da época: as conferências do Plano Marshall, a OECE, a União Europeia de Pagamentos e a EFTA.
Em Espanha, pelo contrário, a pulsão dirigista era esmagadora. A Espanha franquista possuía todas as limitações à liberdade económica existentes em Portugal sem nenhum dos elementos de liberdade. O grande instrumento dessa política foi o famoso Instituto Nacional de Indústria (INI), sobretudo durante a fase de José Antonio Suanzes, entre 1941 e 1963. Neste período, o INI foi um efectivo agente directo de industrialização autárcica. Nos anos 60-70, o INI representava cerca de 10 por cento do PIB espanhol (em Portugal não existiam empresas públicas – excepto residualmente). O controlo do Estado sobre a economia ia, porém, muito além disto. Por exemplo, o sistema bancário estava essencialmente vocacionado para o financiamento destas empresas, seja directamente, seja através do Orçamento do Estado. Apenas episodicamente demonstrou o franquismo preocupação com o equilíbrio orçamental e a disciplina monetária. A política orçamental e monetária foi essencialmente entendida como instrumento para a industrialização do país. A banca espanhola era forçada a constituir uma parte dos seus activos como dívida pública, criada por défices orçamentais cuja explicação era o financiamento das ruinosas empresas públicas do INI. A inflação era um mal permanente da economia franquista, resultando em larga medida do excesso de liquidez gerado por tais práticas orçamentais e bancárias. Acresce que até ao final da sua existência o franquismo nunca aderiu plenamente à liberdade económica internacional, apesar do famoso Plan de Estabilización Económica de 1959. Este plano, embora tenha ajudado a uma maior inserção da economia espanhola nos mercados mundiais, jamais correspondeu a algo de semelhante àquilo que foi feito pelo salazarismo: aderir (como fez em 1960) a uma real área de livre-câmbio (a EFTA).
Ambos os países conheceram um processo de acelerado crescimento económico ao longo dos anos 60 (na verdade, Portugal conheceu-o desde os anos 50), que os modernizou de forma muito significativa. Foi esta a fase de maior aumento de riqueza em toda a história dos dois países. Mesmo assim, o caminho seguido em cada um deles foi muito diferente e a sustentabilidade dos dois modelos não era de modo algum idêntica. O modelo do franquismo não podia durar muito mais sem reforma. O do salazarismo era sustentável. Deste modo, quando chegamos ao final dos respectivos regimes, em meados da década de setenta, o legado económico que ambos deixam é bastante diferente. O franquismo legava uma economia vastamente estatizada, semi-socialista, virada para o mercado interno. O salazarismo, pelo contrário, uma economia saudável, com algumas distorções, mas nada de muito diferente do que existia no resto do mundo ocidental. Curiosamente, depois de cada um dos processos de passagem para a democracia (a transición e o PREC), estas posições relativas alteraram-se.
Muitas vezes, a transição espanhola é louvada pelo seu carácter pacífico e pactuado, por oposição à balbúrdia revolucionária do PREC. Quem o faz, porém, nem sempre menciona que a transición correspondeu a uma dramática crise política e económica, que durou uma década inteira. Neste sentido, o processo português foi bastante mais expedito. Do seu carácter revolucionário resultaram consequências com que ainda hoje temos de lidar, mas ninguém teve dúvidas a partir de 1976 que o futuro do país (exceptuada uma catástrofe) seria democrático. O mesmo não se pode dizer de Espanha, onde mesmo depois das eleições de 1977 e da aprovação da Constituição de 1978, e até à intentona 23 de Fevereiro de 1981, de Tejero de Molina e Miláns del Bosch, e às eleições de 1982, muitas dúvidas permaneceram. É curioso que, dos dois países, Portugal pareceria à primeira vista o mais bem colocado para uma transição pacífica. A moderação do Estado Novo e o seu enquadramento constitucional poderiam ter constituído uma base sólida para a passagem à democracia (fatal aqui terá sido a questão do Ultramar). O mesmo não acontecia em Espanha, onde era necessário desmantelar a estrutura institucional do franquismo de forma sistemática.
O mesmo se aplica ao domínio económico. Para adequar plenamente Portugal ao ambiente económico europeu bastava rever certos aspectos do condicionamento industrial e da organização corporativa. Quanto ao mais, a nossa era uma economia em grande expansão, essencialmente baseada no mercado e dotada de uma interessante estrutura empresarial, onde ao lado dos dinâmicos grupos económicos existiam as pequenas empresas de vocação exportadora. A radicalização do PREC entreteve-se a destruí-la, para criar algo de parecido (em pior) à economia do franquismo. A 11 de Março de 1975, entre um terço a metade da economia foi nacionalizada, incluindo toda a banca, o sector dos seguros, a siderurgia, a construção naval, os sectores do cimento, do papel e da pasta de papel, a indústria química, petroquímica e petrolífera, todos os transportes públicos, a electricidade, a água, o gás e os telefones, e uma parte grande da imprensa. Jamais, fora dos países socialistas e alguns da América Latina ou África, existiu um programa estatizante desta dimensão. A 25 de Abril de 1976, as nacionalizações foram constitucionalmente consagradas, sendo proibido o acesso da iniciativa privada aos sectores públicos.
A ineficiência das empresas públicas acabou por ser financiada através do Orçamento do Estado, o que conduziu, ao longo das décadas de setenta e de oitenta, à destruição do equilíbrio financeiro e monetário típico do salazarismo. Explodiram os défices, a dívida pública e a inflação. O consumo público, se impediu que Portugal sentisse de forma muito intensa o impacto das transformações do PREC, deu origem a uma economia desequilibrada. A grande expansão daquele consumo criou dois fenómenos: a inflação e uma extraordinária pressão sobre a balança de pagamentos. Com uma parte substancial da economia (a nacionalizada) impedida de contribuir para a criação de riqueza, a solução foi recorrer às indústrias de exportação tradicionais. Para lhes oferecer competitividade externa, adoptou-se então o método da desvalorização sistemática do escudo, o que acabou por ser consagrado com a adopção do crawling peg (o deslizamento automático do escudo à medida da taxa de inflação) em 1977 – um mecanismo que se manteve até à entrada da nossa moeda no Sistema Monetário Europeu em 1992. Com o sector económico anteriormente pertencente aos grandes grupos impossibilitado de inovar e as pequenas e médias empresas de exportação favorecidas pela competitividade artificial da desvalorização, a estrutura empresarial portuguesa foi adquirindo um dramático enviesamento no sentido da baixa tecnologia. O problema criado à economia portuguesa pelo PREC foi essencialmente dinâmico, i.e. veio a sentir-se sobretudo no médio e longo prazo, através da perpetuação de uma estrutura industrial obsoleta. Quando em 1989 foi possível a revisão Constitucional que permitiu a abertura do sector nacionalizado, as suas empresas não tinham sido reestruturadas.
Precisamente o contrário aconteceu em Espanha. Curiosamente, ao invés de Portugal, a Espanha durante todo o período da transição viveu em quase permanente crise económica. Para isso contribuiu uma política monetária restritiva (que ao mesmo tempo travou a inflação), a qual foi possível em larga medida graças à moderação salarial negociada desde pelo menos a assinatura dos famosos Pactos da Moncloa, em 1977. Entretanto, ao longo deste período, o INI dedicou-se à reorganização das empresas públicas, e nos anos 80 pôde desfazer-se da maior parte delas. Ao contrário de Portugal, que não precisava de mudanças estruturais para adequar a sua economia à Europa dos anos 70 e 80, a Espanha teve, durante a transição, de proceder ao desmantelamento sistemático da parafernália intervencionista e ineficiente do franquismo. Não admira que a crise fosse tão prolongada. Foi necessário reformular todo o esquema de funcionamento do sistema bancário, terminar com o arbítrio do INI, encerrar empresas e reestruturar drasticamente outras. Quando o PSOE finalmente ascendeu ao poder para três mandatos consecutivos, a transição tinha-lhe legado uma economia expurgada das irracionalidades franquistas. Bastava não estragar.
Em Portugal, a designação de tudo aquilo que vinha do Estado Novo como “fascista” fez pensar aos autores do PREC que também a saudável economia salazarista podia ser assim classificada. Ainda hoje este vício permanece. É hábito atribuir as culpas do nosso atraso ao Estado Novo. Mas a realidade é que nunca outro período da nossa história assistiu a um tão rápido desenvolvimento económico e a uma tão grande aproximação da nossa economia às mais desenvolvidas. Seja como for, através daquela confusão destruiu-se algo que necessitava certamente de melhoramentos e ajustes, mas no essencial correspondia a um bom passaporte para a prosperidade. Em vez disso, criou-se um monstro semi-socialista que continua a arrastar-se por aí, sem que ninguém saiba muito bem o que lhe fazer.
Revista Atlântico de Setembro de 2005
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