Stress da guerra colonial passado à família
As mulheres dos ex-combatentes herdaram sintomas do stress pós-traumático, uma doença que lhes deixou marcas para toda a vida.
Numa troca intensa de correspondência, juraram amor em tempos de guerra e sonharam com o dia em que os noivos regressariam a Portugal. Todas elas esperavam os rapazes por quem se tinham apaixonado, mas viram desembarcar homens sombrios que já não conheciam.
“Cheguei a ir a um bruxo, porque pensava que ele tinha alguma coisa do outro mundo dentro dele. Vinha diferente e ninguém sabia o que ele tinha, ninguém o reconhecia”, recorda Lucília, que encontrou uma resposta no grupo de auto-ajuda da Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra (APOIAR). É num dos edifícios degradados do bairro da Liberdade, em Lisboa, que a APOIAR recebe quinzenalmente 24 mulheres para as reuniões do grupo de auto-ajuda e para as sessões de terapia de grupo, estas últimas coordenadas por uma psicóloga.
Durante décadas viveram isoladas, pensando que o seu caso era único. Só mais recentemente começaram a ouvir falar de “stress de guerra induzido”. Dizem não ter palavras para descrever a angústia e ansiedade e confessam ter momentos em que “perdem o amor pela vida”.
“Eu digo que o meu marido é que está doente, mas sou eu quem toma os comprimidos. O que eu tenho é uma coisa fruto da doença dele”, tenta explicar Conceição, 57 anos, a mais franzina das seis mulheres, que já teve “um esgotamento e várias depressões”.
“Vivemos com um morto-vivo que come, dorme e nunca fala. Nunca há um beijo, não há um carinho. Não há um ‘boa noite’ ou um ‘bom dia’”, descreve Maria de Lurdes, que compara o marido a “uma alma que anda de um lado para o outro”, e acrescenta: “O meu marido esteve 24 meses no Ultramar, mas eu estou em guerra há quarenta anos, desde o dia em que casei”, revela Maria de Lurdes.
Aos 61 anos, Maria confessa já ter chegado a dizer à filha que “a preferia ver morta a casada com um homem como o pai”, apesar de saber que o “marido não é mau” e de se orgulhar de ele nunca lhe ter levantado a mão.
Já a mulher que se senta ao seu lado não pode dizer o mesmo. Sem querer dar o nome, assume-se como uma das três esposas, presentes na reunião, vítima de agressões físicas.
“Às vezes ele bate-me, mas se eu saísse de casa quem é que tomava conta do meu marido?” Ainda assim, todas concordam que “há frases e palavras que magoam muito mais que um estalo”. Elas são muitas vezes o único suporte financeiro e emocional da família, esforço ignorado pelos maridos.
Mais de 800 mil portugueses foram recrutados para a Guerra Colonial (1961-1974). Segundo um estudo do psiquiatra Afonso de Albuquerque, “140 mil homens sofreram graves perturbações psicológicas”.
PELO MENOS 80 MIL VÍTIMAS EM PORTUGAL
O nome técnico é Perturbação Secundária de Stress Pós-traumático. Apesar de não existirem estatísticas rigorosas, os especialistas que trabalham nesta área estimam que haja em Portugal 80 mil mulheres de ex-combatentes com stress de guerra. Susana Pedras, psicóloga da Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra (APVG), com sede em Braga, diz que “as mulheres têm sido, ao longo de décadas, vítimas silenciosas de um problema grave” e que “muitas estão seriamente afectadas e não têm tido qualquer ajuda”. Foi por isso que, há dois anos, a APVG resolveu estender às mulheres o serviço de apoio psicológico aos antigos combatentes e os resultados são “francamente animadores”.
Tal como o CM revelou a 24 de Janeiro, as mulheres que participam neste tipo de grupos de apoio acabam por encarar a vida de forma mais positiva e, em muitos casos, por contagiar os maridos e leva-los a procurar ajuda. As seis mulheres que participaram no terceiro grupo de terapia de apoio, em Braga, estão “extremamente satisfeitas”. Voltaram a gostar delas próprias e a valorizar os maridos que, em tempos, chegaram a odiar.
Rosa diz que viveu mais de 30 anos de inferno. “Quando o conheci parecia um santo, mas nove meses depois deu--lhe o paludismo e, a partir daí, ao rebentar e ao cair da folha, tínhamos sempre novelas em casa”, disse esta mulher, que não tem dúvidas em afirmar que passou a sofrer muito mais de stress do que o marido.
ENLOUQUECEU COM FOGUETES
Conceição começou por rir das atitudes do marido. Julgava--as engraçadas mas, mais tarde percebeu que o caso era bem mais grave. O Grupo de Auto-Ajuda permitiu-lhe compreender a reacção do marido logo no primeiro ‘réveillon’ que passaram juntos.
“Quando, à meia-noite da Passagem de Ano, rebentaram os foguetes, ele transformou-se num louco. Começou aos gritos, escondeu-se atrás dos móveis e depois disse-me que pensava que era um bombardeamento. Fartámo-nos de rir. Mal eu sabia a sorte que me esperava.”
Os problemas da família de Conceição agravaram-se em 1986. “Começou a ter dupla personalidade – ora era um bom pai, um bom amigo e marido ora era um carrasco, um Hitler”, lembrou. Ainda assim, acredita que a culpa não é dele, mas de quem o mandou para a frente de batalha.
"ESTAMOS CONDENADAS"
Segundo a psicóloga da Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra, “existe em Portugal uma cultura que leva estas mulheres a preferirem ser mal tratadas a abandonarem os maridos. Elas justificam a sua decisão, alegando que eles estão doentes”, diz Carla Santos.
Os filhos são a principal razão que apontam para não saírem de casa. Exemplo disso é Maria de Lurdes, a mais traumatizada do grupo: “Tenho tratado do meu marido ao longo de todos estes anos para que a minha filha nunca o veja deitado a dormir num banco de jardim.”
Para as mulheres, o stress pós-traumático é uma “doença hereditária” que passa “de pai para filho e de filho para neto”, mas também uma “doença contagiosa” transmitida “do homem para a esposa”. A Guerra do Ultramar, segundo dizem, condenou-os. “Agora a guerra é nossa”, desabafam as mulheres.
Sílvia Maia, Lusa - CORREIO DA MANHÃ - 27.03.2006
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