"Não precisamos da integração política ibérica para nos desenvolvermos mais depressa, antes ela poderia levar a que se perpetuasse o nosso relativo atraso. A subsistência, passado quase século e meio sobre a unificação da Itália do desnível de desenvolvimento entre o Mezzogiorno e o resto do país mostra que a unidade política, mesmo quando acompanhada de mecanismos de compensação financeira, pode não bastar para se superar o atraso estrutural de uma fracção do território."(texto introdutório)
PAULO DE PITTA E CUNHA, Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
1. Em recente entrevista concedida a um diário de Barcelona, José Saramago declarou-se atraído pela idéia de que Portugal se deveria integrar num novo "Estado Ibérico".
Ora, ao sustentar a tese iberista está a esquecer-se que os tempos não estão propícios para as uniões entre países contíguos. O que prevalece é, ao invés, a acentuação de tendências separatistas no interior de Estados plurinacionais, conduzindo por vezes à desagregação. O impulso integracionista existe, mas no âmbito muito mais vasto da junção de grande número de países em espaços multinacionais à escala continental, como é o caso da União Europeia.
O Estatuto que foi recentemente votado pelo Parlamento de Barcelona não andava longe da
independência - o que terá suscitado a reacção do tenente-general Mena Aguado, admitindo a
intervenção das forças armadas espanholas em defesa da integridade territorial do país, se os limites
constitucionais fossem ultrapassados. Foi de imediato demitido pelo seu Governo, mas o facto é revelador da inquietação que se verifica em face do ressurgir do espectro do nacionalismo catalão.
2. Numa época em que a Jugoslávia se desagregou em cinco países e a Checoslováquia em dois, em que influentes forças políticas italianas advogam a separação radical entre a rica Padânia e a parte meridional do País e se volta a pôr a hipótese da saída de Espanha por parte do País Basco e da Catalunha (ou de repressão da mesma saída), preconizar a adesão de Portugal a uma União Ibérica seria remar contra a maré.
Portugal é, em termos de definição de fronteiras, o mais antigo Estado da Europa, estando os limites territoriais consolidados desde o século XIII (limites que não sofreram alteração até hoje, salvo o caso não resolvido de Olivença). A Espanha, como tal, só se formou pela aliança matrimonial entre Castela e Aragão, próximo do final do século XV.
3. O nosso país está unido em torno de uma língua comum, cuja presença na Europa coincide precisamente com o território nacional e que, sendo a língua própria de duzentos milhões de pessoas, rivaliza com os trezentos e cinquenta milhões que falam o castelhano. Precedendo a Espanha, Portugal lançou-se para a aventura dos Descobrimentos, deixando a sua indelével marca na História mundial. Não seria admissível o seu apagamento numa união a dois, com peso demográfico desigual e poder económico desnivelado.
Melhor será conservar as prerrogativas de Estado soberano e manter-se integrado numa comunidade plurinacional muito mais vasta - a União Europeia (procurando evitar que esta, por seu turno, se transforme em estrutura federal, na qual, como ficou claro no projecto da Tratado Constitucional Europeu, havia fortes probabilidades de os grandes virem a sufocar os médios e os pequenos).
4. Mas subsiste o quadro preocupante da "infiltração económica e financeira" que a Espanha vem praticando, num envolvimento de que, muitas vezes, nem nos apercebemos. Esta situação só poderá contrabalançar-se com a diversificação das fontes de investimento estrangeiro e dos laços comerciais, e
por efeito do nosso próprio desenvolvimento. Mas não há qualquer factor atávico que nos impeça de alcançar o nível médio "per capita" da Europa, que a Espanha está muito perto de atingir e de que nos
encontramos ainda afastados por uma diferença de 25 por cento.
5. Temos de vencer esta diferença, mas confiando nas nossas forças e no poder de decisão das entidades políticas nacionais, não na utopia de uma união que já deu as suas (más) provas, quando, no final do século XVI e na primeira parte do século XVII, se correu o risco de perda de identidade nacional perante a crescente “castelhanização” – a qual se foi desenvolvendo a partir da situação inicial de união pessoal de duas coroas, a que se vieram sobrepor nítidos traços de anexação.
A fábula do despegamento da península em relação ao resto da Europa, que Saramago desenvolve num dos seus livros, já tinha implícita uma visão iberista. Ora, a alegação de que Portugal está rodeado de Espanha por todos os lados não impressiona: acontece é que, talvez por, em rigor, só o estar por dois lados, Portugal definiu desde muito cedo uma vocação atlântica e marítima e afirmou a sua soberania, com o apoio histórico em relações directas com outras potências - sobretudo a Inglaterra.
6. É nas fases prolongadas de desalento e descrença quanto às capacidades nacionais de recuperação que, dissipadas as utopias do tipo do Quinto Império, renascem as propostas de uma fusão ibérica. Ora, se é certo que na actualidade alguns dos sintomas daquela descrença se têm feito sentir, não é menos que se está, felizmente, bem longe do desespero.
Não esqueçamos que na segunda parte da década de 80 Portugal e a Espanha formaram, um a par do outro, os casos de “success story” da Comunidade Europeia.
O período da relativa estagnação dos indicadores económicos e sociais portugueses é ainda relativamente recente. As dificuldades não podem, claro está, ser minimizadas. Para o seu diagnóstico convergem factores como a crise do modelo social europeu e o abrandamento da actividade no continente; a indisponibilidade de instrumentos de política económica inerente à entrada para a zona do euro; o adiamento de reformas necessárias à melhoria da produtividade e à consolidação da posição competitiva do país perante o desafio da globalização.
7. Não é de excluir que Portugal possa vir a igualar ou ultrapassar a Espanha em termos de capitação do produto, ou mesmo atingir, no futuro, o nível de outro país de 10 milhões de habitantes, a Bélgica. É uma questão de organização, de mudança de mentalidades e de reformas de estrutura.
Não precisamos da integração política ibérica para isso, antes ela poderia levar a que se perpetuasse o nosso relativo atraso. A subsistência, passado quase século e meio sobre a unificação, do desnível de
desenvolvimento entre o Mezzogiorno e o resto de Itália mostra que a unidade política, mesmo quando acompanhada de mecanismos de compensação financeira, pode não bastar para se superar o atraso estrutural de uma fracção do território.
É de esperar que, deixados para trás alguns episódios e períodos históricos de crise e desconforto, o relacionamento entre os dois Estados soberanos que coexistem na Península Ibérica, e que há vinte anos participam no processo de integração europeia, se paute pelo propósito de conservar “a maior paz e mais concórdia e sossego”, expressos no documento de Tordesilhas.
PAULO DE PITTA E CUNHA, Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
PÚBLICO - 18.04.2006
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