Quando saí da segunda prisão política em Fevereiro de 1974, fui informado de viva voz, no Paço episcopal do Porto, pelo bispo da Diocese, D. António Ferreira Gomes, que já não era mais o pároco de Macieira da Lixa. E, pelos vistos, já não era, desde o dia em que havia sido preso segunda vez pela PIDE, em 21 de Março do ano anterior. (Convenhamos que para quem acabava de sofrer onze meses de prisão política preventiva, por causa de ter ousado anunciar o Evangelho de Jesus, de forma desassombrada como eu o havia feito, apesar das circunstâncias difíceis do fascismo, a comunicação do bispo não foi nenhum mimo.
Mas foi-me feita, nessa ocasião, para que eu percebesse que não podia regressar mais à paróquia, como pároco. E assim sucedeu). Esta decisão unilateral do Bispo só foi possível, porque , durante mais de um ano, ele manteve-me à frente da paróquia de Macieira da Lixa sem me renovar a respectiva carta de pároco (então, tinha que ser obrigatoriamente renovada ano a ano, o que perfazia uma situação de precaridade de contrato de trabalho paroquial de bradar aos céus!), num anómalo estatuto que ele próprio chamou de "jurisdição permissiva, portanto, precária". O Bispo entendeu proceder assim comigo, perante a forma tão profundamente original e humana como eu exercia as funções de paroco: não cobrava emolumentos por nenhum dos serviços que realizava, nem pelos baptizados, nem pelos casamentos, nem pelos funerais, nem mesmo pelas missas.
E também não cobrava a obrada anual, nem recebia o folar da Páscoa, porque até abolimos o "compasso", importante fonte de receita para a generalidade dos párocos que ainda insistem em manter essa tradição. Tudo na paróquia era de graça. Apenas aceitei que me fosse atribuído um pequeno salário mensal, enquanto eu não conseguia arranjar um trabalho profissional como os demais cidadãos, que desse para eu viver. Mas, mesmo aí, a diferença era assinalável: A verba tinha que ser de oferta livre e anónima. Era apurada a partir da partilha na Eucaristia dominical, no momento do "Ofertório". Cada pessoa presente era convidada a partilhar, livremente e segundo a sua consciência, algum do seu dinheiro para a comunidade paroquial. Todas as despesas seriam cobertas com essa verba, inclusive, a despesa da "Partilha fraterna" que revertia a favor daqueles casos de pessoas e de famílias com mais dificuldade material que estavam a ser acompanhados ao vivo pelos membros da respectiva Equipa. O meu salário era a última despesa a ser contemplada. E meses houve que não havia verba suficiente, de modo que eu recebia menos do que estava previsto. É claro que, com uma prática económica assim, a paróquia não dispunha de dinheiro para enviar para a Diocese.
Os chamados "peditórios" que, então, cada paróquia tinha que fazer, ao longo do ano, por determinação diocesana ou por determinação de Roma, não se realizavam na de Macieira da Lixa. Ao bispo eu dizia que éramos uma paróquia pobre e que até haveríamos de beneficiar da partilha das paróquias mais ricas. Estas, por sua vez, receberiam de nós o nosso testemunho de vida fraternal e solidária e de fidelidade ao Evangelho. O bispo não terá gostado nada desta minha originalidade na vivência do ofício de pároco e disse-me, tempos depois, que enquanto ele fosse bispo do Porto eu nunca mais seria pároco.
E assim se fez. Os seus sucessores entenderam manter esta decisão e, desde então, sou um padre católico sem ofício pastoral oficial, mas não sem exercício do ministério presbiteral, um exercício que eu consubstancio sobretudo no serviço/anúncio da Palavra que liberta, consciencializa e humaniza as pessoas, e que se pode sintetizar na expressão do profeta Isaías que Jesus fez sua, Evangelizar os pobres. Com o tempo, vim a compreender que poderia e deveria levar ainda mais longe a minha originalidade na vivência do ministério presbiteral. Fiz-me então jornalista profissional, em 1975 (carteira profissional n.º 492) e hoje compreendo-me como um padre católico longe dos templos e dos altares, melhor, sem templo nem altar. Não. Nem sequer sou original. O meu mestre Jesus de Nazaré foi historicamente assim. E ainda mais original e mais radical do que eu. Não era sacerdote. Não ordenou ninguém sacerdote. Não convidou para seu discípulo nenhum sacerdote, dos muitos milhares que havia no seu país. Não edificou nenhum templo, nem mandou edificar. Não ergueu nenhum altar, nem mandou erguer. Até destruiu simbolicamente o Templo de Jerusalém.
E num saboroso diálogo teológico com a samaritana, junto ao poço de Sicar, fez uma revelação-confidência que os sacerdotes nunca lhe perdoaram, nem perdoarão e sempre silenciaram e silenciarão. A uma dúvida concreta levantada pela mulher - "Os nossos antepassados adoraram a Deus neste monte [Garizim], e vós [judeus] dizeis que o lugar onde se deve adorar está em Jerusalém" - ele declarou: "Mulher, acredita em mim: chegou a hora em que nem neste monte, nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. Mas chega a hora - e é já - em que os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são assim os adoradores que o Pai pretende. Deus é espírito; por isso os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade." (cf. João 4, 20-24) Com esta revelação-confidência, Jesus declarou inúteis todos os templos e santuários, todos os altares. Mais do que isso: declarou-os prejudiciais. Deus não habita nesses espaços. Nem é cultuado nesses altares, por mais ouro que eles tenham a cobri-los.
Os templos e os altares são locais que os chamados sacerdotes (que Deus é que os fez sacerdotes, se o Deus vivo não habita em templos feitos pela mão do ser humano, não quer cultos nos altares e, por isso, não faz sacerdotes para aí pontificar?) controlam em exclusivo, onde aterrorizam, ameaçam, dominam, manipulam e alienam as pessoas que os frequentam. Se repararmos bem, nos templos e nos altares, tudo está organizado em função do dinheiro que lá deve ser deixado. O deus que lá se adora é o deus-Dinheiro. Se, na travessia do deserto, ao tempo de Moisés e de Aarão, o povo fabricou um bezerro de ouro e adorou-o, hoje, nos templos e nos altares faz-se uma idolatria ainda pior: já não se adora o bezerro de ouro, mas o ouro do bezerro! Também o apóstolo Paulo fazia questão de dizer que não tinha sido enviado a baptizar, mas a pregar o Evangelho. Ora, do anúncio do Evangelho ou Boa Notícia de Deus, nunca pode resultar a construção de templos nem de altares, já que faz parte integrante desse Evangelho o anúncio/revelação do Deus Vivo que é Pai/Mãe e que Jesus nos revelou como espírito, que gosta de ser adorado em espírito e verdade. E adorar o Pai/Mãe em espírito e verdade não é correr para os templos e altares, é ousarmos crescer no mundo e na História, como Jesus, em idade, estatura, sabedoria e graça, até nos tornarmos filhas e filhos adultos de Deus, bem à sua imagem e semelhança, criadores com Ele e como Ele, sujeitos livres e responsáveis, protagonistas, dons/dádivas uns para os outros, até à entrega da própria vida pela vida do mundo.
Adorar o Pai/Mãe em espírito e verdade é deixar que Deus seja Deus em nós, tal como aconteceu com Jesus de Nazaré, o Senhor, de modo que quem nos vê, vê a Deus! (cf. João 14, 9). Sou padre católico. Mas não sou pároco. Nem quero ser. Não tenho templo nem altar. Nem quero ter. E é assim, com este invulgar estatuto eclesial, que agora vivo com o povo de Macieira da Lixa. Se há mais de trinta anos atrás, vivi aqui com o estatuto eclesial de pároco, agora quero viver com o estatuto de padre sem templo nem altar. A minha simples presença, aqui, neste novo estatuto eclesial, constituirá certamente um salutar escândalo evangélico. Pode não ser bem compreendido no imediato, mas sê-lo-á com o andar do tempo. Ainda haveremos de chegar a ser Igreja universal sem templos nem altares. Toda a Igreja há-de chegar a ser assim.
E, quando toda a Igreja for assim, será verdadeiramente Igreja de Igrejas, Comunidade de Comunidades, congregadas no amor recíproco e eucarístico, num combate martirial e duélico contra a alienação da religião e da idolatria, pela libertação e humanização do Mundo. Até que Deus - o do Amor - seja tudo em todas e todos.
Vem, Senhor Jesus! Maranathá!
Pádre Mário / Macieira da Lixa
Comments