Por Cor. Manuel Amaro Bernardo
(…) Apesar de constar no Programa do MFA (agora lei constitucional) a dignificação do processo penal em todas as suas fases, venham a realizar-se “julgamentos secretos”, em que se praticam violações dos art.ºs 7.º, 8.º, 10.º e 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (…).
Requerimento ao CEMGFA do Major Inf.ª Manuel Bernardo em 1-2-1975
(…) Quero saber; esse direito foi-nos prometido em 25 de Abril, o porquê dos saneamentos à porta fechada, tipologicamente nazi-soviéticos. (…)
Capitão. Ref. Joaquim E. Vasconcelos, in “Expresso” de 22-2-1975
Dado continuar a ser interpelado por determinados oficiais em relação a afirmações que fiz em textos publicados na Internet, e ainda pelo facto de ter sido lançado recentemente um livro de Vasco Lourenço, onde ele se gaba que os saneamentos dos oficiais das Forças Armadas foram muito “democráticos”, tenho que voltar, de novo aos comportamentos vergonhosos praticados na revolução de 1974-1975.
Além dos tipos de actuação já referidos (apelos ao poder popular armado, torturas e sevícias realizadas em presos militares, ocupações de casas e de herdades apoiadas e sancionadas pelo COPCON e roubo de grandes quantidades de armamento) praticaram-se, desde 1974, os designados saneamentos, que eram passagens compulsivas à reserva, feitas revolucionariamente pelos Conselhos das Armas, sem que fossem ouvidos os visados.
O General Sousa Menezes, que depois do 25 de Abril seguiu para Moçambique, onde participou do processo de descolonização, até à independência do território, afirmou sobre este tema:
Outro oficial, da FAP, que foi eleito para estes órgãos revolucionários, o General Brochado Miranda, ex-CEMFA, afirmou:
“(…) Não podemos esquecermo-nos de que se viveu uma revolução que, embora sem derramamento de sangue, não deixou de conter todos os ingredientes inerentes a um fenómeno desta natureza:; transferência do poder, subversão das hierarquias, ascensão temporária dos oportunistas, desordem, indisciplina, descaminhos, prosseguimento de uma trajectória própria, que ninguém controla. A revolução é como um tornado. Uma vez desencadeada, ninguém mais a controla. (…)” (in ob.cit., pp 137)
Assim, seria neste conturbado ambiente que foram levados a efeito os tais “democráticos” saneamentos e que levou o então Major Casanova Ferreira a irritar-se com o procedimento dos restantes membros do Conselho da Arma de Infantaria (a que pertencia Vasco Lourenço) e a abandonar definitivamente estas sessões secretas. Curiosas são, a certa altura, as suas afirmações:
(…) Ainda eu safei alguns dos saneamentos, como foi o caso do Salazar Braga, do Firmino Miguel e do Soares Carneiro.. (…) (in Manuel A. Bernardo, “Marcello e Spínola; a Ruptura”/1996, pp 298)
Sobre esta matéria foi muito elucidativa a tomada de posição de 28 majores do Curso de Infantaria de 1959-1960, em relação a elementos, que estavam para ser saneados, através de uma moção assinada por eles no Porto, em 23-2-1975 e dirigida ao CEME, General Graduado Carlos Fabião:
(…) Considerando como imperativos da nova ordem social, a Liberdade, a Responsabilidade, a Verdade e a Justiça;
(…) Considerando que o saneamento processado no seio deste Ramo da Forças Armadas se mostra em muitos casos extremamente injusto e contrário à Declaração Universal dos Direitos do Homem e ao espírito dos princípios consagrados no Programa do Movimento das Forças Armadas, actual Constituição do País;
Considerando que o direito de defesa é um direito inalienável e imprescindível, que a ninguém pode ser recusado;
Os oficiais abaixo assinados (…) decidiram apelar para o alto critério de Justiça de V. Ex.ª, aprovando por unanimidade a seguinte resolução:
1. Contestam a representatividade do Conselho da Arma de Infantaria e a forma discricionária, revoltante e não revolucionária como vem sendo aplicado o Decreto-Lei 309/74.
2.Reclamam que a todos os oficiais visados por decisões de saneamento, seja garantido o direito de conhecerem os respectivos fundamentos, com a eventual confidencialidade requerida para cada caso.
3.Reclamam que a todos os oficiais que, por escrito ou verbalmente, repudiem as imputações que lhe sejam feitas, se instaure o respectivo processo de averiguações ou de auto de corpo de delito conforme o caso, salvaguardando sempre o direito de defesa do arguido. (…)
Em relação a este assunto, em livro publicado no mês passado, Vasco Lourenço afirma:
“(…) Depois fizeram-se eleições para esses Conselhos das Armas e dos Serviços. E aqui quero realçar o facto de todos os oficiais terem votado. Mesmo aqueles em relação aos quais havia a convicção de que viriam ser saneados. Numa atitude de abertura total, não se impediu ninguém de votar. Mais democrático que isto é difícil de imaginar…!
“E foram esses Conselhos, assim eleitos, que decidiram sobre os saneamentos. Pertenci ao Conselho da Arma de Infantaria e posso afirmar que não houve perseguições, nem revanchismos de qualquer natureza. (…)
Estará este oficial a falar da mesma realidade descrita por aqueles 28 majores, por Casanova Ferreira, por Brochado Miranda, ou por Sousa Menezes? Procedimento democrático? Considero tais afirmações não têm a mínima credibilidade; e sublinha-se ainda que nem uma única vez Vasco Lourenço refere o carácter secreto das decisões, sem qualquer direito a serem conhecidos os fundamentos das mesmas, como seria da mais elementar justiça, para quem delas quisesse recorrer. Tal procedimento, como já foi salientado, era contrário aos mais elementares Direitos do Homem
Mandados de captura em branco no COPCON
A vaga de prisões ocorrida em 28 de Setembro de 1974 teve mais como alvo as consideradas figuras ligadas ao regime anterior. No entanto, após a armadilha do 11 de Março de 1975, vieram a ocorrer muitas detenções de militares, alguns dos quais sem qualquer participação nas acções verificadas nessa data.
Foi o caso do amigo Joaquim Vasconcelos que, a meu pedido, escrevera um artigo no “Expresso”, cerca de três semanas antes, contra esses saneamentos, com o título “Pela Reclassificação Isenta; Contra o Saneamento Discricionário”. Além do extracto acima realçado, afirmava a determinada altura:
(…) Houve então que ir sucessivamente transferindo o espantalho e o opróbio (do “fascismo”) para o monopolismo capitalista, a burguesia capitalista, a pequena burguesia, o conformismo pequeno-burguês e finalmente, quando mesmo assim ainda escasseiam os alvos para o tiro instintivo dos saqueadores, há que institucionalizar um inimigo, que resista às agruras do tempo e às marteladas da destruição.
“Em vez de se ter estudado a caracterizado em pormenor o inimigo, considerou-se levianamente que ele só tinha uma face e esqueceu-se da outra, que além de totalitarista, também era anti-portuguesa e imperialista. E é muito difícil vencer quando se menospreza o adversário!
“A subestimação permitiu muito cedo que começasse a ser negado a muitos compatriotas o direito de colaborar na tarefa ingente que a todos devia amalgamar. O inimigo soube assim escolher uma arma digna do seu antecessor e que corrói, ao bom estilo da guerra bacteriológica, a sociedade portuguesa: o saneamento.
“O protesto da legítima defesa de quantos sofreram os vilipêndios das perseguições, cíclicas na nossa História, faz com que, mesmo aqueles que reclamam e invocam o direito ao trabalho, sejam os que começam a rasgar no solo nacional os sulcos profundos do divisionismo e da desconfiança. (…)”
Como referi, o autor deste artigo, que no dia 11 de Março apenas foi visto a falar com Casanova Ferreira, no Comando Distrital da PSP de Lisboa, seria metido em Caxias em 12-3-1975, por “forte suspeita de crimes de insubordinação e coligação”, tendo permanecido incomunicável durante um mês, por ter exigido um advogado nos interrogatórios! Apenas passados alguns meses sairia em “liberdade condicional” e, mais tarde, completamente ilibado das acusações falsas, que selvaticamente lhe atribuíram no pós 11 de Março.
Continuando as tropelias revolucionárias
Mas a maneira como foram utilizados os mandados de captura em branco, do COPCON (que Casanova Ferreira nunca cumpriu, tendo rasgado e mandado para o lixo os que lhe foram enviados, por não irem assinados pelo Juiz da Comarca…), foi descrita, no pós-25 de Novembro de 1975, por Otelo Saraiva de Carvalho, como declarante, ao juiz instrutor do processo:
“(…) No que se refere a prisões, passou o COPCON a actuar como um agente de polícia captor, com a diferença de que os mandados de captura eram emitidos pelo próprio COPCON.
“(…) Assim, a Repartição de Informações, responsável pelo controlo dos mandados de captura, apresentava ao declarante vários exemplares destes em branco, já numerados, sendo cada exemplar em triplicado. O
“(…) Todos os dias, o oficial encarregado da sala sete (Informações, Major António Cardoso ou Capitão Tasso de Figueiredo) recebia do oficial de serviço os mandados não utilizados, que recolhiam à sala sete, à responsabilidade daqueles oficiais.(…)” (Ob. cit. pp 640 e 641)
A propósito das referências feitas por este oficial (Tasso de Figueiredo) sobre as minhas afirmações em textos anteriores, quero salientar que mantenho o que disse em relação ao facto dos oficiais acusados terem sido amnistiados/perdoados das acusações (25 de Novembro) que lhe foram feitas pelo Juiz de Instrução Criminal e não com base em “balelas ou bocas”… Apenas as faltas disciplinares terão sido dadas como inexistentes pelo Conselho Superior da Força Aérea e, como consequência daquela amnistia, puderam os oficiais atingidos prosseguir as suas carreiras. Nem eu (nem ninguém) põe em causa a carreira militar seja de quem for. Limito-me apenas a tentar analisar o sucedido ao longo do período revolucionário de 1974-75.
Também poderia acrescentar a diferença entre o procedimento havido com os presos do 25 de Novembro e os do 11 de Março. Enquanto a maior parte destes estiveram detidos cerca de sete meses, e muitos saíram sem qualquer acusação formulada, como foi o caso de Casanova Ferreira e Manuel Monge, os primeiros apenas estiveram presos até ao 25 de Abril de 1976 (cinco meses no máximo) e foram sujeitos aos procedimentos judiciais normais de um Estado de direito e não ao de um qualquer tribunal revolucionário, que chegou a ser nomeado “legalmente” para os do 11 de Março.
Ocorreram, de facto, os comportamentos vergonhosos já identificados, a que juntei agora os escandalosos saneamentos de oficiais e as detenções com mandados de captura em branco, executados por quem não tinha legitimidade para o fazer. Até se poderiam acrescentar as tentativas de promover a fuzilamentos dos presos que fossem considerados “mais perigosos” para o avanço da revolução. Foram feitos vários abaixo-assinados nesse sentido e terá sido a tentativa ensaiada na assembleia selvagem do MFA, de 11 para 12 de Março, que levou Vasco Lourenço a “acordar” e a tomar uma posição frontal contra tal desiderato, patrocinado por Varela Gomes.
Porque até aí ele e os outros líderes do MFA deram o agrément a todas as graves situações ocorridas, desde as barricadas e as aleatórias prisões do 28 de Setembro de 1974, às detenções de gestores ligados à banca, em 13 de Dezembro, até à aprovação, pelo autodesignado Conselho dos Vinte, da contestada (pelo PS e partidos à sua direita) unicidade sindical, em 13 de Janeiro de 1975.
O que me apraz dizer sobre estes textos (e opiniões no fundo) é que maior parte destas pessoas que se queixam de saneamentos não percebeu o que lhe podia ter acontecido caso esta revolução não tivesse sido levada a cabo por quem a fez, sem derramamento de sangue...
Posted by: Manuel Pereira | 16-09-2011 at 16:08
O PREC (Período Revolucionário em Curso) que se seguiu à Revolução de 25 de Abril de 1974 foi o período mais exaltante da REVOLUÇÃO, no qual, os trabalhadores e a maioria do Povo Português tiveram nas suas mãos o poder de decidir!!!... Como dizia o saudoso Zeca Afonso:- "O assumido PREC - o nunca desmentido PREC!".
Posted by: António Carvalho | 27-06-2010 at 19:10
Relativamente aos textos apresentados neste blog sobre "os comportamentos vergonhosos durante o PREC", sou da opinião que não deveria haver discriminação dos militares que durante o tempo da guerra colonial, combateram contra a ocupação em qualquer ex-colónia, pois sabemos que estavam a cumprir uma missão ao serviço da Pátria e a sua nomeação cabia inteiramente ao próprio governo da Nação. Assim,sou contra qualquer acto de violência ou tortura que pudesse ter sido cometido contra esses militares.
Posted by: Mendes | 02-07-2009 at 20:36