Arquitectura
Francisco de Castro relembra o Grande Hotel da Beira, em Moçambique
Depois de muitos anos de dúvidas e pesquisa, eis que o «mistério» do Grande Hotel da Beira, em Moçambique, está resolvido. Durante décadas nos interrogávamos sobre como tinha sido possível ali edificar tamanho colosso, quem o desenhara e edificara, e quando fora realmente construído; e ainda porque fechara pouco depois de inaugurar. O arquitecto Francisco de Castro contactou-nos, e com total naturalidade, como participante activo neste já longínquo processo tudo esclareceu.
Apresentemos em primeiro lugar este autor, o qual, como muitos outros arquitectos, é quase desconhecido do nosso público. Nascido em Lisboa em 1923, fez o curso de Arquitectura entre 1939 e 1952, ano em que concluiu a sua tese, a qual versou sobre um Clube Náutico para Pedrouços - elegante solução moderna, evocando a dinâmica arquitectura brasileira da época (mereceu a classificação de 19 valores e foi publicado na renovada revista «Arquitectura»). Sendo activo desportista, e velejador, foi-lhe fácil a escolha de tema e programa.
Francisco de Castro também tirocinou brevemente com António Lino (1941) e com Pardal Monteiro (1943), e foi colega de outros autores como Nuno Craveiro Lopes e Henrique Albino, aprendendo a prática da profissão, já no final do curso, com as obras do arquitecto António Gomes Egea (em 1949; outro nome caído no esquecimento) e no «atelier» de Ruy Athoguia e Formosinho Sanchez (em 1951, participando no projecto do Bairro das Estacas, em Alvalade).
Foi então que Francisco de Castro teve a sua oportunidade, à semelhança de muitos jovens formados de então que queriam iniciar a carreira libertos do pesado constrangimento do portugalzinho ibérico, apertado na Nação salazarista. O engenheiro António Arantes e Oliveira (irmão do futuro ministro), director da Companhia de Moçambique na Beira, contratou-o, em 1953, para concluir o gigantesco hotel, já em obra na segunda cidade da colónia. José Porto, o arquitecto do projecto-base (1883-1965, de quem se fez uma exposição em Vilar de Mouros, terra natal, em 2003), tinha-se desligado do processo, regressando a Portugal, e uma obra mastodôntica com 12.000 m2, orçada em dezenas de milhar de contos, estava à deriva, sem projectos de pormenorização, sem acompanhamento por arquitecto.
A concepção da obra era de facto grandiosa, quiçá megalómana: O projecto de urbanização daquela cidade, também por José Porto, previa o funcionamento no conjunto hoteleiro, sito em vasta esplanada à borda do Índico, e de uma piscina olímpica - note-se que todo o objectivo inicial do empreendimento seria a inclusão de um casino, coisa que Salazar nunca viria a autorizar (ao que parece, por pressão dos governos da África do Sul, que queriam evitar a concorrência futura com os casinos da Suazilândia e da Rodésia) e que ditou o futuro infortúnio financeiro do empreendimento.
Em 1953, subavaliada a obra (orçada de início em 35.000 contos), queria-se inaugurar no ano seguinte; só se concluiu mais tarde, em fins de 1955, com um custo realisticamente proposto por Castro, de cerca de 90.000 contos, e com 125 quartos, em vez dos inviáveis 90 de início. Mas não deixou de primar pelo luxo e pela qualidade máxima de equipamentos e design interior, de autoria de Francisco de Castro, que tudo cuidadosamente acompanhou até à inauguração (cozinhas e lavandarias com equipamento alemão; ar condicionado na «boite»; portas de elevadores «Securit», inovadoras; mobiliário em madeira, em parte de Lisboa, em parte de um fabricante alemão local).
Dois anos depois, por via de uma gestão e de uma direcção incapazes, e também sem o afluxo de público esperado para a actividade de jogo nunca consentida, fecharia as portas - enquanto o Hotel Embaixador, no centro da cidade, obra também por F. Castro, abria em 1956-57. Foi porém local de muitos eventos complementares da «boa sociedade» beirense, ainda por muitos anos: nos amplos salões, onde se festejaram casamentos; na enorme piscina, mantida como espaço municipal; e nos bares e dancings, onde a «beira nocturna» foliava.
Preso pela atracção africana, Francisco de Castro radicou-se numa Beira em pleno crescimento, onde desenvolveu a sua actividade até 1961, quando regressou a Lisboa para tomar conta do atelier do tio, o arquitecto António Lino, então falecido. Castro foi nesse tempo professor de Desenho no recente Liceu da Beira, criado pela influência de Jorge Jardim - um personagem mítico da colónia, com quem privou. A Carlos Ivo, único arquitecto que na época vivia na Beira, vieram então juntar-se entre outros, Paulo de Melo Sampaio e João Garizo do Carmo, com os quais F. Castro trabalhou nalguns projectos conjuntos. Mencionem-se ainda como outros autores de significado, intervenientes na cidade e na região, José João Malato, Julião Azevedo e Carlos Veiga Camelo.
A lista das principais obras de F. Castro já foi inventariada por António Albuquerque (em Arquitectura Moderna em Moçambique 1949-1974, tese de licenciatura em Coimbra, 1998), mas dentre elas podemos destacar alguns edifícios de habitação e comércio («Cocorosis», na Praça do Município, 1952-54; «Megaza», de 9 pisos, em 1958), o Hotel Embaixador, de 1956-58, diversas moradias, além de projectos não edificados, para o «Diário de Moçambique» (1954) e para o Cine-Teatro Eduardo Brazão (1955). Castro ganhou ainda o prémio municipal «Dr. Araújo de Lacerda» de 1954 e de 1958 (este atribuído em 1961), respectivamente com moradias para Francisco Queriol e para Eduardo Ferreira (esta curiosamente de gosto «Português Suave»). Tratava-se de uma espécie de Prémio Valmor à escala da Beira, que foi atribuído anualmente durante os anos 1950-60.
Note-se que a gestão municipal da Beira, na segunda metade dos anos 50, era a vários títulos exemplar: na área central da cidade, apenas os arquitectos podiam assinar projectos (seguindo-se áreas onde já assinavam engenheiros, e depois, na periferia, agentes técnicos e desenhadores); os processos camarários respectivos incluíam nas telas finais os recibos de pagamento dos técnicos (escrupulosamente seguindo as tabelas do MOP) e era obrigatória uma minuciosa descrição dos trabalhos e materiais a utilizar; finalmente, um «Conselho de Estética», renovado de 6 em 6 meses, formado por arquitectos e engenheiros, tudo supervisionava.
A obra mais importante de Francisco de Castro foi projectada em colaboração com Paulo de Melo Sampaio e João Garizo do Carmo: a notável estação de caminhos-de-ferro da Beira (1958-60, inaugurada em 1966), ganha em concurso (uma iniciativa notável lançada com o empenho do arquitecto camarário Bernardino Ramalhete). Sampaio desenhou o bloco rectangular de escritórios, Garizo a parte dos cais e Castro o elegante corpo curvilíneo, de ampla transparência, da entrada (as atribuições exactas da obra, outro «mistério» só agora clarificado pelo único autor vivo). Castro foi ainda autor de inúmeros projectos em África, como os anteplanos de urbanização de Vila Cabral-Lichinga e de Tete, bem como da agência do BNU nesta cidade.
Mesmo depois de regressado a Lisboa, Francisco de Castro manteve-se sempre ligado a África, que visitava quase anualmente. Neste tempo projectou o agência do Banco Nacional Ultramarino em Quelimane, desde 1961, inaugurado tardiamente, em fins de 1973, e a Fábrica de Tabaco de Benguela, em Angola, de 1972. O BNU constitui ainda hoje, intacto, um elegante volume prismático, de ricos materiais, decorado com peças por João Ayres (pintor) e Francisco Relógio (muralista). A propósito da luxuosa sede bancária, Castro referiu-nos ainda um edifício vizinho que muito o impressionou: o notável Grande Hotel de Quelimane, contemporâneo e desenhado por Arménio Losa, impecavelmente executado por firmas do Porto; mencionou também a estação ferroviária, por Mário Couto Jorge, outro autor portuense como Losa, e a qualificada aerogare da cidade, pelo arquitecto Octávio Rego Costa, já falecido.
Em Lisboa, Francisco de Castro prosseguiu a sua actividade, sobretudo ligada à construção de edifícios bancários e de sedes de empresas: foi assessor da obra da sede do BESCL na Avenida da Liberdade (projecto de uma empresa inglesa, Building Design Partnership), projectou as sedes da Cimianto (com o arquitecto Leonardo de Castro Freire), da Cimpor, etc. - e um interessante imóvel na Rua das Picoas (com o arquitecto Sousa Dias), a Casa de Repouso do Patriarcado. Mas é sobretudo o seu assinalável ciclo de trabalhos em Moçambique que aqui desejamos e procuramos dar a conhecer.
TEXTO DE JOSÉ MANUEL FERNANDES
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