Por JOÃO JOSÉ FERNANDES E LUÍS MAH
Público - Sexta-feira, 14 de Maio de 2004
Nas últimas semanas, os governantes portugueses, entre viagens e eventos, têm demonstrado que o continente africano continua supostamente a merecer uma atenção estratégica por parte do nosso país. Mas o que pode realmente a região mais pobre do mundo esperar de Portugal?
Para quem vá lendo, com alguma regularidade, os relatórios das organizações internacionais (governamentais e não-governamentais) e as notícias sobre o continente africano, a sua realidade política, económica e social emerge quase sempre como feita de Estados falhados, desastres, calamidades, conflitos, fome, doenças, corrupção e outros males. E embora haja alguns casos de sucesso como o Bostwana e as ilhas Maurícias - destacados no último "World Economic Outlook"
(Abril 2004) do FMI -, esta imagem de uma África destroçada e pobre não está assim tão longe da verdade.
É o próprio FMI, autor das reformas estruturais impostas a muitos países do continente e fortemente criticadas pela vasta comunidade que trabalha na área do desenvolvimento, o primeiro a dizer que se os níveis de pobreza globais diminuíram de 28 para 22 por cento entre 1990 e 2000 (últimos dados disponíveis), na África subsariana os níveis de pobreza extrema aumentaram, com quase metade da população a subsistir abaixo do limiar da pobreza - com cerca de 90 cêntimos/dia.
Para atingir os objectivos da Cimeira do Milénio - redução para metade da pobreza extrema mundial até 2015 -, diz ainda o FMI que seria preciso acelerar o crescimento económico na África subsariana para cerca de 7 por cento ao ano. E, para alcançar esses valores, a região necessitaria de algo que não tem: recursos financeiros.
A forma mais rápida de ter acesso a esses recursos financeiros passa pelo aumento da ajuda pública ao desenvolvimento (APD). E se é verdade que há alguns países africanos que acabam por não saber utilizar essa ajuda, não só por causa da corrupção mas também por mera incompetência, também existem outros países pobres no continente que, por serem bem governados, sabem usufruí-la adequadamente, como o Uganda, a Tanzânia ou Moçambique. Porém, como escreveram recentemente no "Financial Times", Nancy Birdsall e Todd Moss do Center for Global Development em Washington, o problema é que os fluxos de APD estão sujeitos às prerrogativas políticas dos países ricos, obrigados a lidar com défices fiscais, e às necessidades de responder às mudanças constantes dos interesses geo-estratégicos.
O caso de Portugal é paradigmático. Entre 2000 e 2002, a APD portuguesa subiu de cerca de 293,6 milhões de euros (0,26 por cento do Rendimento Nacional Bruto) para 342,3 milhões de euros (0,27 por cento). Mas, se olharmos bem para as estatísticas do Instituto Português de Ajuda ao Desenvolvimento, vemos que a situação mais não foi do que fruto dos compromissos que o país assumiu essencialmente em relação a Timor-Leste. Em 2003, num período de crise, o cenário já não é o mesmo. Segundo a OCDE, no ano passado, Portugal foi o país-membro cuja APD sofreu a redução mais acentuada, com menos 24,8 por cento. No final de 2003, Frans Polman, presidente da Concord - Confederação Europeia das ONG para o Desenvolvimento e Ajuda Humanitária, representante de mais de 1200 ONG em toda a Europa comunitária, incluindo a Oikos - em carta dirigida ao primeiro-ministro, expressava a sua preocupação e indignação com a situação preocupante da APD em Portugal. As suas palavras não podiam ser mais claras: "A APD é a mais reduzida da Europa comunitária; a quota destinada às ONG na APD é a mais reduzida da Europa Comunitária (1 a 2 por cento, quando a média europeia ronda os 10 a 11 por cento); esta quota da APD em Portugal para as ONG, estimada este ano em 2,2 milhões de euros, é a mais reduzida da UE. A Grécia conta com uma quota de 40 milhões de euros (quase 20 vezes mais que a dos portugueses); a legislação sobre o mecenato e os benefícios fiscais é pouco clara, omissa e insuficiente como alternativa ao co-financiamento público dos projectos das ONG."
Para acentuar ainda mais esta orientação do Governo português, nada melhor do que olhar para o "ranking" anual realizado pelo Center for Global Development e pela revista "Foreign Policy" ("Ranking the Rich: The 2004 CGD/Foreign Policy Commitment to Development Índex") sobre o compromisso para com o desenvolvimento por parte das 21 nações mais ricas do mundo, onde é incluído Portugal. Em 2003, Portugal ocupava o terceiro lugar. Este ano desceu para 14º. Adivinhe-se então qual terá sido o indicador em que Portugal voltou a ter a pior avaliação? Precisamente na quantidade e qualidade da APD.
Membros da Oikos, Cooperação e Desenvolvimento