PÚBLICO - Sexta-feira, 11 de Junho de 2004
A aventura do jovem casal lisboeta mal desabrocha e já murcha. "Quero ir embora o mais rápido possível", anuncia Carla Canomer, seis meses depois de ter chegado a Moçambique.
Há a saudade a moer, os olhos entupidos pela pobreza propagada como se fora um vírus, o clima áspero e a ausência das miudezas que fazem o chamado estilo de vida ocidental. "Sinto falta até de ir a um hipermercado", ria-se Carla Canomer. Seis meses em Nampula e estava desejosa de pôr fim à sua aventura africana. "Quero ir embora o mais rápido possível."
A vida dói na esburacada cidade de Nampula. A miséria bamboleia pelas ruas, chicoteia os olhos de quem está habituado a ter tudo. Carlos Canomer, o marido da jovem Carla, é "ambicioso". Viu ali um lugar de oportunidade.
Desde o televisor, o primeiro-ministro português, Durão Barroso, insistia no discurso da economia estilhaçada. Cá fora, a crise fazia minguar lucros, encerrar portas, engordar desemprego. Os Canomer tinham uma pequena empresa de material informático e sentiam a quebra. Com a força de um calhau. "O que está a dar é África", não se cansava de afirmar um amigo do casal.
Carlos viajou até Nampula para fazer "prospecção de mercado". Pôs um empregado a vender. Em três meses, "facturou mais sozinho do que a empresa inteira com sete" vendedores em Portugal. O jovem empresário, de 30 anos, resolveu "arrumar as botas".
De início, Carlos fazia temporadas curtas - de dois ou três meses. Carla assumiu os destinos da empresa em Lisboa. E ele vivia com um pé em Portugal e outro em Moçambique. "Não era vida, o meu filho já estava a ficar agressivo com a mãe, falava comigo e chorava."
Um ano e meio de desencontros saudosos e o casal resolveu acertar passo. "Sinto falta da família, da educação, do civismo, de... um simples 'obrigada', de um 'bom dia'. Sinto falta até de ir a um centro comercial, a um hipermercado", dizia ela, aos seis meses de estadia. Mais ainda de "um cinema". O cinema Almeida Garrett, em Nampula, foi comprado pela Igreja Universal do Reino de Deus.
Sem as prateleiras cheias que caracterizam a sociedade de consumo, Carla aprendeu a açambarcar. "Somos obrigados a aprender que não há e a viver com isso", diz Carlos. Carla não: "Não me habituei e acho que nunca me vou habituar." Nem às prateleiras vazias, nem à fome que arde em seu redor, nem à mentalidade que faz com que os funcionários dos bancos, por exemplo, a convidem a ignorar filas - apenas porque é branca, acredita.
"Temos um filho de quatro anos. Aqui não há a educação que quero para ele", frisava, de olhos postos no miúdo. Olhava para o miúdo, simpático, comunicativo, e via "um alvo fácil". Tirou-o da escola portuguesa. "Era capaz de virar o mundo do avesso", revirava os olhos Carlos, só de imaginar um rapto. De onde vem tal ideia?
Carla não se fia em ninguém em Nampula. Rodeou-se de segurança. "Houve um cliente que nos alertou: 'Tenha cuidado que até os empregados vendem os nossos filhos.'" Depois, uma freira missionária foi assassinada, a cidade foi invadida por jornalistas estrangeiros que seguiam denúncias de tráfico. "Ficámos muito assustados."
Os Canomer entenderam que parecia sobrar algum exagero nas "estórias" que chegavam do "mato" e acalmaram. Nem por isso, porém, recuaram na decisão de regressar a Portugal. A pressão familiar também ajudou. "A minha sogra, assim que soube que o meu filho apanhou malária, ficou muito preocupada: que o menino não tinha bons médicos, que não havia remédios, que...", contava Carlos.
Nampula não é o fim do mundo. O hospital funciona, ainda que com crónica falta de meios. Têm empregados para tudo (chegam ao cúmulo de ter três domésticos). E os lucros são enormes. Mas isso, pelos vistos, vale menos do que o conforto do "lar". Lar no sentido de cultura de vida também. "A nossa filosofia não encaixa aqui." Até ao Verão, "o mais tardar", abandonarão o país. A.C.P.