NARRATIVA
O feminismo negro de Paulina Chiziane
Adelto Gonçalves
Se a literatura escrita por mulheres já é um mundo diferente, abordado por ângulos que romancistas e contistas homens dificilmente vêem, imaginemos, então, o que pode ser o mundo visto por uma mulher africana, moçambicana, ainda mais se é governado por costumes e tradições que nos soam estranhos. Esse estranho e mágico mundo é o que oferece em seus livros Paulina Chiziane, a primeira romancista de Moçambique.
De Paulina, a Companhia das Letras, de São Paulo, acaba de lançar Niketche, uma história de poligamia, que a Editorial Caminho, de Lisboa, publicou em 2002 e já está em segunda edição. Nascida em 1955, em Manjacaze, na província de Gaza, ao Sul de Moçambique, Paulina freqüentou estudos superiores de Lingüística em Maputo, mas não os concluiu, e atualmente vive e trabalha na Zambézia. A sua estréia deu-se em 1990 com a publicação de Balada de amor ao vento.
Depois, publicou Ventos do Apocalipse (1999) e O sétimo juramento (2000), todos pela Caminho. Aos 20 anos, ela cantou o hino da independência moçambicana, gritou contra o imperialismo e o colonialismo e, depois, com a guerra civil que arrasou o país, desencantou-se. Por isso, os seus livros nem sempre falam diretamente da guerra, mas de um país destruído, da miséria de seu povo, da superstição, dos rituais religiosos e da morte.
A autora recusa o rótulo de romancista, definindo-se apenas como contadora de histórias, inspirada naquilo que ouviu, quando criança e adolescente, da boca dos mais velhos à volta da fogueira. Niketche vem do nome de uma dança de iniciação sexual feminina da Zambézia e de Nampula, no Norte do país, região predominantemente macua, onde está a Ilha de Moçambique, primeira capital das possessões portuguesas da África Oriental e local de desterro do poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), por onde passaram também em épocas diversas Luís de Camões (c.1524-1580) e Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805).
O romance conta a história de amor entre Rami, mulher do Sul e de nível social superior à da imensa maioria das mulheres do país, e Tony, alto funcionário da polícia em Maputo. Casada há vinte anos de papel passado e aliança no dedo e mãe de muitos filhos, Rami, desprezada pelo marido, desconfia de aventuras extraconjugais de Tony. Então, descobre que o marido tem mais quatro mulheres e muitos filhos. Vai à casa de cada uma das rivais, às vezes sai no braço com elas, mas, no final das contas, trava amizade com todas a ponto de, em certo dia, reuni-las em sua casa para fazer uma festa-surpresa ao marido.
A iniciativa, porém, desperta a ira da sogra de Rami, para quem a monogamia é um sistema desumano que marginaliza uma parte das mulheres, privilegiando outras, “que dá teto, amor e pertença a umas crianças, rejeitando outras, que pululam pelas ruas”. Diz a sogra: “O meu Tony, ao lobolar cinco mulheres, subiu ao cimo do monte. Ele é a estrela que brilha no alto e como tal deve ser tratado. E tu, Rami, és a primeira. És o pilar desta família. Todas estas mulheres giram à tua volta e te devem obediência. Ordena-as”.
Lobolo é o dote que o homem dá à mulher ao casar, mas lobolar aqui serve também para definir o ato de quem sustenta um lar. Ao conhecer suas rivais, Rami vai entrar em contato com séculos de tradição e de costumes, a crueldade da vida e também com a diversidade de mundos e culturas que convivem em Moçambique.
É difícil entender estes pensamentos sem conhecer a dimensão da tragédia africana. Em país de poucos homens – milhares morreram na guerra, muitos ficaram mutilados, outros tantos emigraram –, as mulheres parece que aceitam dividir seus maridos umas com as outras, embora a poligamia venha de tempos já perdidos, quando os cultores do Islã desceram a África e disseminaram suas crenças e costumes.
Em alguns lugares de Moçambique, como na província sulista de Gaza, é comum que a mulher atenda ao chamado do marido de imediato, largando tudo o que está fazendo. Mais: quando o marido chama, ela não pode responder de pé. Também é difícil entender esta conversa sobre violência na família: “A minha mãe sempre foi espancada pelo meu pai, mas nunca abandonou o lar. As mulheres antigas são melhores que as de hoje, que se espantam com um simples açoite”.
Para as seguidoras de Simone de Beauvoir e Flora Tristán, tudo isto, certamente, parece estranho, mas é a forma que Chiziane encontrou de denunciar o sofrimento das mulheres africanas, subvertendo os valores tradicionais. Isso não significa que partilhe integralmente dos valores das feministas brancas. A dita civilização branca já levou tanto sofrimento à África que qualquer idéia, mesmo emoldurada por valores humanitários, sempre é recebida com desconfiança. E não poderia ser diferente.
O trágico é que o grito de Paulina, dificilmente, será ouvido ou compartilhado pelas mulheres de Moçambique, pois os escritores africanos escrevem para o leitor branco de fora de seus países que pode comprar seus livros, já que, em razão dos altos índices de analfabetismo e dos baixos níveis sócio-econômicos, as tiragens nos países africanos de língua portuguesa são ínfimas, o que não significa que em Portugal e no Brasil sejam muito superiores.
Já em Balada de amor ao vento (1990), seu primeiro romance, Paulina conta o relacionamento entre Sarnau e Mwando, da juventude à idade madura, suas alegrias e sofrimentos, até a separação dolorosa e o reencontro. Mas, antes de tudo, trata do conflito vivido por uma moçambicana entre o mundo moderno e o mundo tradicional, a África arcaica, seus valores eminentemente machistas em que a mulher só existe para servir ao homem e constituir seu objeto de desejo.
Paulina viveu no campo até os sete anos, quando se mudou para os subúrbios de Maputo, então a colonial Lourenço Marques, para estudar. No campo falava a sua língua materna, o chope, e, quando se mudou para a cidade, teve de aprender o português na escola, enquanto era obrigada nas ruas a falar o ronga, a língua nativa de Maputo.
Balada de amor ao vento recupera as histórias que Paulina ouviu em sua infância, quando ficava a escutar a avó contar casos ao pé da fogueira. Uma dessas histórias é a de Sarnau, a jovem que descobriu que amava Mwando, um rapaz que estava encaminhado para ser padre. O namoro, porém, não prospera, cada um vai para um lado e Sarnau acaba virando uma das mulheres do rei das terras de Mambone.
Depois de casada e bem casada, ela vê Mwando reaparecer e vive outro romance. Perseguidos, acabam de novo separando-se. Mwando, depois de se envolver com a mulher de um sipaio (soldado), foi deportado para Angola, onde passou quinze anos a plantar cana e café. Um filho de Sarnau, gerado por Mwando enquanto ela era rainha, acaba coroado rei, depois da morte do presumível pai, enquanto a mãe é obrigada a cumprir um destino de prostituição para sobreviver.
Este é um livro feminista, mas feminista à maneira africana: não é uma obra que desafie o estatuto da mulher africana ou moçambicana. Aliás, usar termos como africana e moçambicana é correr o risco das generalizações. No próprio Moçambique, há flagrantes diferenças: o norte é uma região matriarcal, onde as mulheres têm mais liberdade, enquanto o sul e o centro são regiões patriarcais, extremamente machistas. E a narrativa de Balada de amor ao vento ocorre em Gaza, a mais machista de Moçambique, onde a mulher, além de cozinhar e lavar, para servir uma refeição ao marido tem de fazê-lo de joelhos.
Portanto, este livro traz o olhar do feminismo negro, que é diferente do feminismo branco, porque muito mais trágico. Ou alguém duvida que a mulher negra sempre foi muito mais oprimida e massacrada que a branca, que vive do suor de seu próprio rosto há muito mais tempo, que responde por sua própria família desde épocas imemoriais, embora fuja à luz da razão discutir gradações de violência?
Basta ler O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII, de Luciano Figueiredo (Rio de Janeiro, José Olympio/Edunb, 1993) para se perceber que o papel da mulher – e, mais ainda, da mulher negra – sempre foi esquecido em nossos livros de História, como se a colonização e a ocupação do território brasileiro tivessem resultado apenas da ação do homem.
E que as poucas mulheres idealizadas por nossa poesia arcádica oitocentista, como Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, a Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, e a Bárbara Eliodora, de Alvarenga Peixoto (1744-1793), só foram incensadas pelo romantismo do século XIX porque eram brancas, enquanto a negra Francisca Arcângela Cardoso, que deu quatro filhos a Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) e lhe inspirou vários poemas, está esquecida até hoje.
Tal como na África a mulher negra na América também buscou suas próprias estratégias de sobrevivência, desempenhou papéis econômicos, criou os filhos e protagonizou muitas histórias – que, com certeza, estão à espera do talento de uma Paulina Chiziane brasileira para contá-las como se conta histórias à beira da fogueira e seguir uma tradição iniciada pela maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), a primeira romancista negra do Brasil.
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NIKETCHE, UMA HISTÓRIA DA POLIGAMIA, de Paulina Chiziane, Lisboa, Editorial Caminho, 334 págs., 11,93 euros, 2002. São Paulo, Companhia das Letras, 337 págs., R$ 45, 2004. www.companhiadasletras.com.br
BALADA DE AMOR AO VENTO, de Paulina Chiziane. Lisboa, Editorial Caminho, 151 págs., 7,56 euros, 2003. www.editorial-caminho.pt
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]