PÚBLICO - Sexta-feira, 11 de Junho de 2004
É uma espécie de paraíso - luminosidade esmerada, canteiros despertos, árvores generosas, um lago cálido, algumas montanhas em redor. O cenário é tanto mais surpreendente quanto está situado a escassos 18 quilómetros da caótica e miserável cidade de Nampula. Matias Torres mora em África há 40 anos. E é nela que quer passar o resto dos seus dias. "Não gosto do 'stress' da Europa, gosto de estar aqui, no campo, a mexer com as mãos."
O corpulento Matias Torres virou costas à Madeira aos 16 anos. "Passei muita fome quando era novo." Chegou à África do Sul com "uma mão à frente e outra atrás". Esteve lá três anos e não conseguiu "fixar residência". Era explorado pelos compatriotas. Lembra-se bem de andar descalço e esfarrapado. Tinha de fazer duas horas de viagem para o emprego, trabalhava 16 horas por dia. "Mal tinha tempo para dormir." E não se podia queixar. Era um clandestino.
Não ficou a odiar a terra de Thabo Mbeki. De quando em quando, faz férias por lá. E, sempre que um familiar adoece, é lá que procura socorro. A mulher, Verónica, ainda agora lá esteve. Está a recuperar de uma malária, a "doença da terra". Perdeu sete quilos. "Qualquer doença grave tem de ser na África do Sul" - o sistema de saúde, em Nampula, deixa muito a desejar.
Matias Torres já residia em Moçambique aquando da revolução de 25 de Abril de 1974, após a qual mais de 75 mil portugueses saíram de África. Caíra nas mãos do regime, fora forçado a entrar na guerra colonial, montara praça em Maputo, cumprira serviço militar em Nampula. Era um jovem, acabadinho de casar.
Verónica perde-se na memória desses perfumes juvenis. Sem suspirar. "Tinha 13 anos quando o conheci, comecei a namorar aos 16, casei por procuração ao fim de dez", ri-se, sentada na esplanada de sua casa. "Aquilo já não era namoro, nem era nada, era uma madrinha de guerra", achega o marido. Ela desembarcou em Moçambique em 1973.
O regresso à ilha nunca foi equacionado. Braços rijos, pernas grossas, uma vontade indomável de vencer: "A gente ia para a Madeira fazer o quê? Não tínhamos nada lá!" Não padeciam de ambições desmesuradas. Sonhavam ter "uma casa farta". "Tínhamos de apostar."
Os primeiros tempos foram duros. Matias Torres montou uma pequena fábrica de aguardente. Produzia cachaça com essência de banana e de papaia. "Inventou" a de papaia em 1975. "Nesse tempo era só eu que fazia, e era o que se bebia em Nampula, Agora há dez ou 15 - alguns até usam o meu rótulo..." E andava no negócio dos transportes.
Foram anos de longas viagens de camião entre Maputo e Nampula. Matias Torres deixou-se disso nos anos 80 - a guerra civil tornava as estradas demasiado perigosas, Verónica consumia-se em preocupações, os três filhos eram então muito pequenos, teve de se reajustar. Dedicou-se, então, à "machamba".
Na quinta - de 515 hectares - há bananeiras, mangueiras e outras árvores de fruto. Também há bovinos, caprinos, aves. Ainda há pouco, começou a funcionar um restaurante. A quinta também integra uma componente de turismo de habitação. E a família tem negócios na cidade. Conta com cerca de 150 empregados.
Nem uma gota de vontade de reconstruir o trilho de regresso. Há dez anos que Matias Torres não põe pé em Portugal. Quase já não tem família na Madeira natal. Gaula, Santa Cruz, é já só biografia. É aqui que se sente bem. Há muito que é assim. Foi em Moçambique que se fez. Mas ainda ouve as notícias debitadas pela RTP Internacional.