PUBLICO - Quarta-feira, 16 de Junho de 2004
Por Ana Dias Cordeiro
Os traficantes da geração do pós-guerra fria fizeram chegar a vários países africanos, os excedentes de armas que passaram a circular facilmente com o desmembramento da ex-URSS. Hoje, são acusados pela ONU, ou as justiças nacionais mas protegidos pelos governos que lhes oferecem cargos diplomáticos e lhes multiplicam as nacionalidades. Quando deixam de ser úteis, dificilmente serão postos em causa. Se o forem, poderão eles próprios comprometer personalidades dos Estados que recorreram aos seus serviços, e abrir o jogo de interesses secretos em várias regiões do mundo, sobretudo África.
O francês Pierre Falcone, o ucraniano Arkadi Gaïdamak ou Victor Bout, do Tajiquistão, estão entre os mais influentes e mediáticos negociantes de armas do mundo. Fazem parte de uma geração de comerciantes de material bélico - que surgiu depois do fim da guerra fria - capaz de colocar no mercado os excedentes de armas dos países do antigo bloco soviético.
São acusados pela ONU de violarem embargos e alimentarem guerras, e perseguidos pela justiça, em França, Bélgica ou Suíça, em casos de tráfico de influências, branqueamento e desvio de fundos, em negócios de venda ilegal de armas.
São alvo de mandados de captura internacionais mas não serão julgados, segundo investigadores contactados pelo PÚBLICO. Pelo menos no imediato. Já passaram pela prisão. Hoje estão em liberdade.
Detidos momentaneamente, a sua libertação dá-se quase sempre "de forma inexplicada". A julgar pelo anterior caso do belga Jacques Monsieur, serão para sempre protegidos dos países com quem colaboraram.
"Os traficantes não podem ser vistos como independentes dos Estados", diz Patrice Bouveret, investigador de um instituto de pesquisa em França, o Centre de documentation et recherche sur la paix et les conflits (CDRPC).
Por isso se tem revelado tão difícil ir até ao fim nos processos lançados pela justiça. Quando não conseguem ficar "incógnitos", os traficantes conseguem pelo menos complicar a tarefa dos juízes graças às imunidades diplomáticas e outras protecções que lhes são concedidas pelos Estados.
Pela capacidade que demonstraram em montar sistemas para traficar armas numa aparência de legalidade - com falsificação de certificados de armas e de registos de companhias de transporte aéreo - traficantes de renome, como Victor Bout, tornaram-se indispensáveis; é a eles que os governos recorrem quando uma intervenção militar num país ou numa região é pretendida mas não publicamente assumida. Por isso, mesmo quando deixam de ser úteis, dificilmente ficarão expostos.
Foram precisos 20 anos de perseguições judiciais em França e na Bélgica, com mandados de detenção internacionais, para que uma das principais figuras do tráfico de armas, dos anos 80, o belga Jacques Monsieur, fosse julgado, na Bélgica, em 2002. Foi condenado a uma pena "simbólica" que em nada contribuiu para pôr fim à impunidade no mundo do tráfico, segundo Georges Berghezan, ", especialista do Groupe de recherche et d'information sur la paix et la sécurité (GRIP), na Bélgica.
Um acordo entre a defesa e a acusação de Jacques Monsieur terá sido negociado para não comprometer os governos e os serviços secretos dos países que recorreram aos seus préstimos, incluindo o reino da Bélgica.
Manter estes negociantes de material bélico como pessoas de confiança serve para os governos terem "margens de manobra para apoiar regimes ou guerrilhas, que querem apoiar", ou seja para poderem "continuar a intervir na cena internacional sem ser pela via diplomática", explica Patrice Bouveret.
A este comércio clandestino dá-se o nome de "mercado cinzento", por estar entre o "mercado negro" e o "mercado oficial" - serve para operações clandestinas, secretas, "mas em benefício dos governos ou pelo menos com o seu apoio", acrescenta Berghezan.
A ausência de um texto internacional sobre armas convencionais faz com que seja a legislação de cada país a definir se uma determinada transferência de armas é legal ou ilegal. Mas nem todos os países dispõem de leis nessa matéria. E isso abre espaço a que, numa situação de embargo, alguns Estados violem as regras, passando por países terceiros. Além disso, a existência de uma lei internacional "tornaria os mandados de captura internacionais mais operacionais".
Mandados de detenção "inoperacionais"
O mandado de captura, emitido contra Victor Bout, não tem qualquer utilidade, segundo Berghezan. "Com a protecção dos EUA, há interesses superiores em jogo", diz este especialista. Os EUA retiraram recentemente o traficante soviético Victor Bout da lista dos proscritos da ONU, por este lhes fornecer serviços de transporte de armas para o Iraque.
Os casos de Pierre Falcone e Arkadi Gaïdamak comprovam também a facilidade com que pessoas com influência conseguem escapar à justiça apesar de serem alvo de mandados de captura.
O Ministério Público da República Francesa não desiste de perseguir estes dois protagonistas do "Angolagate" - em processo relacionados com a venda de armas para o Governo angolano. Mas encontra obstáculos.
Por um lado, o Governo francês não tenciona melindrar as autoridades de Angola, onde mantém interesses no sector petrolífero dominado pelos EUA. Por outro, não quer arriscar-se a facilitar um julgamento, em França, e alienar outros potenciais traficantes.
"O que este caso [de Falcone] demonstra é que em matéria de comércio de armas, há ligações entre o Estado e os traficantes", explica o especialista em transferências de armamento, Patrice Bouveret. "Se o Governo [francês] fosse até ao fim, através da justiça, mais nenhuma outra pessoa voltaria a aceitar ocupar-se disso sabendo que depois também não seria protegido", acrescenta. Este especialista não tem dúvidas: "Em casos destes, o Executivo pode bloquear, neutralizando a independência que tem normalmente a justiça".
O juiz francês, que lançou as acusações em torno da "venda ilegal" de armas a Angola, solicitou, sem sucesso, o levantamento da classificação de segredo de Estado de documentos importantes nem conseguir ter a cooperação dos países para onde Pierre Falcone viaja. O empresário invoca uma imunidade que lhe confere um passaporte diplomático angolano, concedido por Luanda, através da sua nomeação para representante de Angola na UNESCO, em Paris, com a anuência das autoridades francesas. "Isso permitiu à França não se implicar completamente mas garantir indirectamente a protecção de Falcone", explica Patrice Bouveret.
O empresário francês chegou a ser retido pela Interpol, à sua chegada a vários países, acabando por ser libertado. Desde o princípio do ano, Falcone passou várias vezes por Lisboa sem que as autoridades portuguesas dessem conhecimento da ocorrência às autoridades judiciais francesas, como previsto no quadro da cooperação judicial entre Estados e pelos sistemas que regem a gestão dos mandados de captura a nível internacional. Falcone esteve também na Grã-Bretanha, Suíça - onde é igualmente perseguido - e em Espanha, sem nunca ser incomodado.
Quatro Figuras Que Alimentam Guerras em África
A actividade do belga Jacques Monsieur desenvolveu-se no contexto da guerra fria. Uma nova geração de traficantes - soviéticos com ligações a Israel - surgiu depois beneficiando dos "stocks" da capacidade de produção de armamento, e da flexibilização dos sistemas de controlo deste sector, nos países da ex-URSS. Dessa geração, fazem parte Arkadi Gaïdamak e Pierre Falcone, os dois maiores suspeitos do "Angolagate", de venda de armas a Angola, e o temido Victor Bout, que financiou vários conflitos em África, e se mantém hoje em plena actividade.
Por Ana Dias Cordeiro
Jacques Monsieur
O "Marechal" que prometeu silêncio aos serviços secretos em troca da
sua libertação
Conhecido por "Marechal" pelas influências que exercia, Jacques Monsieur iniciou as suas actividades em plena guerra fria, nos anos 80, quando a Administração Reagan decidiu armar o Irão então em guerra com o Iraque. Mais tarde, antes da queda do muro de Berlim, este traficante belga desempenhou um papel importante nos contactos que a NATO desenvolveu com as autoridades da Polónia. Já em 1991, e apesar do embargo imposto pela ONU à ex-Jugoslávia, Monsieur organizou o fornecimento de armas aos croatas e à facção muçulmana da Bósnia-Herzegovina, contra o regime sérvio, iniciado a pedido da CIA "que parece ter organizado um encontro entre o [já falecido] Presidente croata Tudjman e [Jacques] Monsieur em Zagreb", escreve o investigador belga Georges Berghezan no artigo "Jacques Monsieur: da NATO ao Irão, protectores bem colocados", de 2002. Essas armas provinham da Argentina, de países do Leste Europeu, da China e do Irão. Durante as duas décadas em que operou, Jacques Monsieur ajudou
regimes ou grupos rebeldes em quatro continentes, com o conhecimento ou a colaboração dos serviços secretos de vários países: a SDRA belga, a Mossad israelita, a CIA americana, a DST francesa, a Cesid espanhola.
O tráfico, que organizava a partir da França e dos EUA, deixou marcas na África do Sul, durante o regime do "apartheid" (sob embargo) no Congo-Brazzaville, no Congo-Kinshasa (Ex-Zaire), na Libéria e na Costa do Marfim, países que, sucessivamente, vieram a ser palco de conflitos. Em 1997, e em nome da
petrolífera francesa Elf, faz chegar importantes carregamentos de armas em apoio ao então Presidente Lissouba que a petrolífera francesa tencionava manter no poder, em Brazzaville, antes da entrada em força do actual Presidente Sassou Nguesso.
Num momento em que as coisas correram mal, Monsieur ameaçou revelar os esquemas de pagamentos de comissões, financiamentos de campanhas eleitorais de dirigentes africanos, e tráfico de armas, organizados pela Elf. Os patrões da petrolífera prometeram-lhe então abrir-lhe novos mercados (de armas) no Congo-Brazzaville e em Angola.
Só ao fim de 20 anos de actividades Monsieur, foi julgado, em 2002. A defesa negociou umapena "simbólica" em troca do seu silêncio. "Ele poderia ter comprometido os serviços secretos de vários países ocidentais", diz Georges Berghezan. "A própria NATO seria posta em causa." Mais do que o seu julgamento foi a sua ligação a Teerão que o fez cair em desgraça (nos países ocidentais) e abandonar a actividade.
Victor Bout
Negociante activo e isento de sanções por decisão dos EUA Viktor Vasilevitch Butt ou Victor Anatoliyevich Bout, são dois dos vários nomes utilizados pelo ex-oficial militar soviético conhecido nos meios policiais por Victor B. para simplificar. Victor Bout nasceu no Tadjiquistão em 1967, dispõe de pelo menos cinco passaportes, e é alvo de dois mandados de captura internacional. É proprietário de uma frota de aviões ex-soviéticos, registada como Air Cess, e um dos maiores traficantes ainda em actividade. Teve treino militar na Rússia e terá trabalhado como oficial do KGB pouco antes do fim da guerra fria. Poderá estar a viver nos Emirados Árabes Unidos, ou na Rússia, mas os seus aviões estão registados em vários
países africanos, como a Guiné Equatorial ou a República Centro-Africana.
A sua rede de fornecimento e transporte de armas foi considerada "única", pela ONU, por conseguir fazer chegar sistemas sofisticados de armamento em praticamente qualquer parte do mundo, quase sem deixar rasto, recorrendo a certificados forjados por uma rede comercial secreta. Grande parte da sua actividade consistia, pelo menos até há pouco tempo, em fornecer, a países da África Ocidental armamento proveniente da Bulgária, Moldávia, e Ucrânia.
A ONU responsabilizou o traficante soviético pelo prolongamento de conflitos em Angola e na Serra Leoa, através da venda de armas, em troca de diamantes (à UNITA de Jonas Savimbi, ou à Frente Unida Revolucionária).
E por isso, já este ano, decidiu congelar os bens de Victor Bout, para lhe restringir a actividade, colocando-o numa lista de proscritos. Um diplomata da ONU sintetizou que para haver paz na África Ocidental, "ele devia constar dessa lista". Tal não aconteceu. O seu nome foi rapidamente retirado, sob pressão dos Estados Unidos e da própria Grã-Bretanha, que em 2000, através de um membro do Governo
de Londres o tinha qualificado de "negociante da morte". Foi na altura em que era considerado "persona non grata" por Washington por alegadamente fornecer armas ao ex-regime dos taliban em Cabul, meses antes de os EUA lançarem a guerra contra o Afeganistão. Essa percepção mudou recentemente: Bout, que era um incómodo para Washington transformou-se num aliado de conveniência, ao ajudar as forças da coligação anglo-americana no transporte de armamento para o Iraque.
Pierre Falcone
Mercador de armas e ministro-conselheiro deAngola na UNESCOPierre Falcone, francês, de origem argelina, foi adquirindo, ao longo das suas actividades, várias nacionalidades; além da francesa, a brasileira e a angolana. Através dele, Luanda adquiriu material bélico numa fase determinante do conflito contra a UNITA, entre 1993 e 1994. A linha oficial do Governo francês impedia o fornecimento de armas a Angola, mas várias personalidades públicas e a petrolífera Elf facilitaram esses negócios. Pierre Falcone é alvo de um mandado de captura internacional emitido pela justiça francesa, em Janeiro deste ano, sete meses depois de Angola o ter nomeado ministro-conselheiro na UNESCO. É pois com um passaporte diplomático angolano que Falcone se tem deslocado a vários países incluindo Portugal, onde tem invocado a imunidade diplomática que lhe confere esse cargo.
O caso tem motivado alguma tensão entre a França e Angola que pediu que todas as acusações de que é alvo Falcone fossem arquivadas. Não se confirma porém que Luanda tenha ameaçado Paris de não renovar as concessões petrolíferas da francesa Total (antiga Elf), como chegou a ser referido na imprensa angolana. "É difícil dizer se iriam ao ponto de retirar as concessões", explica o investigador francês Patrice Bouveret. "Esse factor tem peso mais não é o principal." O que tem peso, neste caso, é que "se uma pessoa como Pierre Falcone cair em desgraça, há o risco de vir a fazer revelações que impliquem de forma mais formal responsáveis franceses".
O ex-ministro do Interior Charles Pasqua e Jean-Christophe Miterrand, filho do defunto Presidente francês, são duas das várias personalidades públicas implicadas nos negócios ilícitos relacionados com o "Angolagate". O mandado de captura continuará inoperacional. Mas com a grande atenção internacional, sobre a questão das armas, Falcone poderá "ficar ligeiramente fora de jogo", explica Bouveret. "O Governo francês não vai voltar a recorrer a ele, porque isso seria demasiado perigoso. O mandado tem mais esse papel de estigmatizar do que um papel jurídico. Enquanto pessoa, ele será neutralizado. Mas o importante não é isso, porque ele poderá colocar outro a fazer as mesmas operações".
Arkadi Gaïdamak
O milionário que abriu as portas das ex-républicas soviéticas
Enquanto Falcone facilitava os contactos em Angola, Gaïdamak abria as portas nos mercados de armas dos países do Leste europeu. O "Angolagate" juntou-os como sócios num esquema entre a Rússia e a França, para a transferência de armas com destino de Luanda, e que envolveu centenas de milhões de dólares. São indiciados nos mesmos processos judiciais, em França e na Suíça. Mas contrariamente a
Falcone, o milionário de origem ucraniana nunca foi formalmente acusado, porque nunca compareceu a um juiz. É-lhe atribuído o perfil do industrial novo rico da ex-URSS que ascendeu economicamente com a Perestroïka, que cedo se mudou para o Ocidente. A carreira de empresário de Gaïdamak ganhou um impulso quando, já em França, trabalhou como tradutor nas negociações dos grandes acordos
energéticos franco-russos, antes de ficar conhecido como um dos principais suspeitos do "Angolagate".
Gaïdamak, que nas raras entrevistas que concedeu a jornalistas, se fazia acompanhar de guarda-costas, refugiou-se então em Israel. As suas boas relações não se limitam a Israel ou à Rússia. Em França, Gaïdamak foi condecorado pelo suposto papel desempenhado na libertação de dois pilotos franceses feitos reféns na ex-Jugoslávia, em 1995, surpreendendo os meios policiais franceses que já o associavam a actividades suspeitas na Rússia. Mas ao contrário de Falcone, que intervinha sempre a partir da França, Gaïdamak diversificou os países de onde organizava as suas operações, o que lhe permitirá mais facilmente manter as suas actividades, além de que beneficia de pelo menos quatro nacionalidades, concedidas por Israel, França, Angola e Canadá.