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Embora não se enquadrando em nenhum dos preceitos constantes no estatuto constitutivo da CPLP, o chamado projecto de cidadania lusófona tem vindo a marcar a agenda da discussão das últimas reuniões. Da reunião do Grupo de Trabalho sobre Cidadania e Circulação no espaço da CPLP, que teve lugar no âmbito da III Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, realizada em finais de Janeiro de 2001, resultou, em forma de conclusões, numa pequena lista de boas intenções, por entre “encorajamentos” e “recomendações” a cada Estado-membro. Traduzido por outras palavras, apesar de alguns constrangimentos, todos os Estados-membros concordam que é possível avançar passo a passo para a concretização do estatuto do cidadão lusófono, desde que haja vontade política...
A cidadania deve ser entendida como um conceito abrangente, que inclui a fruição de direitos cívicos, políticos, económicos e sociais, e tendo o cidadão no centro do sistema de legitimação dos Estados. Originária da Grécia clássica, a cidadania resulta de um longo processo de sedimentação e desenvolvimento no sentido de uma maior valorização e dignificação do Homem. Na antiguidade estava ligada ao civitas, o homem pertencente a uma determinada cidade-Estado e cidadão livre. Apenas a estes estavam reservados a fruição de um conjunto de direitos e deveres. Com a Revolução Francesa e a Declaração de Independência das colónias americanas o conceito de cidadania ganha maior relevo em termos da sua conceptualização. O seu reconhecimento formal, associada à sua extensão a todos os homens, chega com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.
Mesmo não sabendo ainda muito bem qual será o alcance, em termos precisos e rigorosos, que o estatuto de cidadão lusófono poderá vir a ter em outros Estados-membros, Cabo Verde aprovou, no Parlamento, o Estatuto de Cidadão Lusófono. Assim, o cidadão de um país da CPLP com domicílio em Cabo Verde goza de certos direitos, por exemplo, quanto à capacidade eleitoral activa e passiva para as eleições autárquicas; quanto ao exercício de funções públicas, quanto ao estabelecimento e acesso aos serviços públicos. O cidadão lusófono pode ainda adquirir a nacionalidade cabo-verdiana sem exigência de perda da sua anterior nacionalidade, e tem direito à emissão de um cartão de identidade que o identifica precisamente como cidadão lusófono. Mas pergunta-se: será que os restantes países estarão, a médio prazo, em condições de fazer o mesmo? E Portugal, como irá conciliar as suas obrigações do Tratado de Schengen com a chamada “Cidadania Lusófona”, sabendo que esse estatuto implicará, necessariamente, a livre circulação de pessoas e bens? Será possível a existência de uma comunidade sem o aprofundamento das relações económicas, sociais e de cooperação entre os seus membros? A continuar a existir como até agora, em que dois dos seus membros - Portugal e o Brasil - assinaram acordos de atribuição recíproca de direitos civis especiais, estaremos perante uma CPLP a duas velocidades. Do ponto de vista prático, é por demais evidente que a CPLP de nada valerá sem que aos cidadãos dos Estados-membros seja atribuído um estatuto especial que os diferencie dos outros estrangeiros. Que reacção se pode esperar de um cidadão de um Estado-membro que se vê em grandes dificuldades para obter um simples visto de trânsito que não tenha outra finalidade senão tratar de algum assunto ou visitar amigos e familiares? Já alguém pensou, por exemplo, nos familiares das centenas de doentes evacuados que permanecem nos hospitais portugueses? Por outro lado, é sabido que os cidadãos enfrentam dificuldades de acesso à educação e à saúde pública para si e para os seus familiares num outro país lusófono. Tudo isto significa que, de uma forma geral, os povos precisam de sentir “na pele” e usufruir dos resultados práticos da cooperação no quadro da CPLP.
Um primeiro passo seria aprofundar a harmonização legislativa. A Constituição da República Federativa do Brasil já prevê um favorecimento dos cidadãos oriundos de países de língua portuguesa, nomeadamente na aquisição da cidadania brasileira (residência em território brasileiro durante quatro anos seguintes e idoneidade moral). A Constituição Portuguesa preceitua, no nº3 do artº 15º, aquela que poderá vir a ser uma porta aberta para a instituição da cidadania lusófona, quando prevê direitos especiais em condições de reciprocidade, direitos não conferidos a estrangeiros.
Se o objectivo maior da CPLP consiste em dar expressão efectiva à existência de uma Comunidade que assenta nos laços de solidariedade, fraternidade e cooperação que unem entre si Portugal, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe, Moçambique e Timor Leste, cabe aos seus órgãos dirigentes, primeiro que tudo, a tarefa de não defraudar as suas populações e criar um fosso separando a instituição dos seus cidadãos.
Margarida Castro