NOTAS DE LEITURA SOBRE A GUERRA E O COMÉRCIO LIVRE DE FREDERICO DE LA FIGANIÈRE (*)
ANTÓNIO PALHINHA MACHADO E ANTÓNIO PEDRO MESQUITA
Sendo possível acabar com a guerra no mundo, estabelecendo a paz universal, o meio não consiste em aumentar os terríveis efeitos das armas de destruição, mas sim e unicamente em conciliar e ligar de tal modo os interesses materiais das diferentes nações, que eles apresentem uma barreira impenetrável contra quaisquer dissensões. (A Guerra e o Comércio Livre, p. 4)
1. Enquadramento Biográfico e Contextual
Frederico Francisco Stuart de la Figanière e Mourão, fidalgo-cavaleiro da Casa Real, é uma figura injustamente esquecida da cultura portuguesa do século XIX.
Desde logo, pouco se conhece da sua biografia.
Dos parcos elementos disponíveis, sabe-se que nasceu em Nova Iorque a 2 de Outubro de 1827, que se distinguiu como diplomata e publicista e que foi graduado em visconde a 25 de Maio de 1870. Não se conhece sequer a data exacta da sua morte.
Contudo, o seu trabalho, designadamente em economia política, que aqui consideramos, mereceria outro interesse, atento o facto de ser, sem contradição, o mais informado e consistente arauto do liberalismo económico entre nós e o mais precoce dos seus epígonos.
Entenda-se, pois, este contributo, breve e assistemático, como um primeiro exercício de restituição de um pensamento fecundo e de reabilitação de um autor imerecidamente ignorado.
Sem dúvida que o seu lavor intelectual vai mais além das estreitas margens sob as quais o consideramos aqui.
Na sua obra principal, A Liberdade e a Legislação vistas à luz da Natureza das Cousas, de 1866, encontramos todos os principais tropos do liberalismo oitocentista, na sua variante moderada e reformista, como o primado do indivíduo e dos seus direitos imprescritíveis sobre as formas de organização da sociedade e do Estado, a solidariedade irrefragável entre a igualdade civil e a desigualdade social, a importância do equilíbrio entre o elemento aristocrático e o elemento democrático, etc., mas também interessantes tomadas de posições acerca de tópicos controversos então em debate, como o municipalismo ou a organização do sistema eleitoral.
É, porém, especificamente no aspecto económico que hoje nos queremos deter.
Como é sabido, os pensadores liberais portugueses de Oitocentos são-no, em regra, também no domínio económico e, portanto, optam genericamente pela doutrina livre-cambista.
Herculano é-o decididamente.
Mouzinho não se debruça especificamente sobre a questão, mas a sua postura a respeito da propriedade rural é marcadamente liberal.
É essa desde logo a posição que expressa no Relatório do Decreto de 13 de Agosto de 1832, que consagra a emancipação da terra pela transformação dos forais em bens próprios dos donatários e onde se lê emblematicamente:
Sem a terra ser livre em vão se invoca a liberdade política.
E uma vez mais, quase dez anos passados, em estilo de epigrama parlamentar:
Sr. Presidente, parece-me indispensável para quem quer estabelecer a liberdade num país, estabelecer a liberdade do solo. Quando um homem está na presença de um facto de restrição, a sua alma faz-se restrita e pequena: é impossível que um homem seja morgado e não tenha na cabeça ideias mesquinhas; é impossível que um indivíduo seja foreiro e não tenha ideias mesquinhas na cabeça. (...) Por consequência, é preciso que a terra seja livre: demasiada terra temos escrava.
Mas o mais abalizado e desenvolvido contributo nesta matéria vem-nos precisamente do visconde de la Figanière, que é, simultaneamente, o mais original paladino do liberalismo económico no Portugal de Oitocentos.
Encontramos nele, a título de tese principal, a defesa do livre-cambismo como princípio indissociável e decorrência necessária do liberalismo político:
Na nossa sociedade, o princípio da liberdade individual existe e tem garantias; todos estão portanto no caso de concorrer para o equilíbrio das riquezas; para todos há um benefício no trabalho, benefício variável e que depende dos esforços do indivíduo; todos os homens prestam-se serviços reciprocamente e todos tiram o correspondente proveito. Neste princípio de liberdade, que abrange o de livre concorrência, está a salvaguarda da organização moderna; produz uma reacção contra os maus efeitos que, faltando esta condição, não deixaria de causar a acumulação das riquezas.
Esta tese é exposta no opúsculo A Liberdade e a Legislação vistas à luz da Natureza das Cousas (1866), mas sobretudo em A Guerra e o Comércio Livre (1854), que lhe é integralmente dedicado, dentro do espírito do seu objectivo confesso, que consiste em mostrar que “o princípio do comércio livre”, se for “adoptado lealmente por todas as nações”, é “o único meio de tornar impossível a guerra”.
Em conformidade, a doutrina aí preconizada é a de que a generalização do comércio entre as nações, na medida em que tenha por consequência a criação de interdependências estreitas, recíprocas e globais, é a única prevenção segura, e esta absolutamente eficaz, contra a guerra.
O argumento do ensaio é, resumidamente, o seguinte:
1. A influência do interesse recíproco é mais eficaz do que o sentimento de medo e do que o poder da persuasão na discussão da guerra entre as nações.
2. Assim, se for simplesmente possível “acabar com a guerra no mundo, estabelecendo a paz universal, o meio não consiste em aumentar os terríveis efeitos das armas de destruição, mas sim e unicamente em conciliar e ligar de tal modo os interesses materiais das diferentes nações, que eles apresentem uma barreira impenetrável contra quaisquer dissensões”.
3. Com efeito, suponha-se que duas nações estão “tão estreitamente ligadas nos seus interesses comerciais que uma não possa dispensar as produções que lhe fornece a outra sem terríveis consequências”. Neste caso, “se esta situação for recíproca, a guerra entre elas será quase impossível”.
4. Ora o modo de generalizar à escala mundial essa rede de interesses recíprocos é “o comércio livre, concepção grandiosa, nascida do génio enérgico e altamente positivo do século em que vivemos”.
5. Assim, na medida em que a maior parte dos “países da cristandade” são complementares do ponto de vista dos produtos que cultivam, extraem ou transformam, bastaria que cada país se dedicasse exclusivamente “àqueles ramos de indústria que lhe indicassem as condições especiais do seu território, abandonando todos aqueles cuja existência dependesse da protecção ministrada pelo sistema restritivo” para que “os povos, não podendo nem querendo prescindir de cousas que se lhes têm tornado necessárias pelo uso e não as achando em casa”, fossem “buscá-las fora”, generalizando deste modo o comércio, de que é um resultado “a dependência recíproca de todas as nações entre si”.
É certo que nem o núcleo fundamental da tese nem o argumento são inteiramente novas, uma vez que a importância do comércio internacional e o papel da paz na sua universalização constituem um legado essencial dos fundadores da economia política.
Mas a verdade é que a ideia de uma relação directa e necessária entre o comércio livre e a paz mundial, a antecipação da doutrina em prol da globalização e da crítica aos meios convencionais de dissuasão, designadamente por recurso aos arsenais de destruição massiva, são inteiramente novas, mesmo em termos da filosofia e economia políticas coevas.
Estes factos chegariam para fazer dele um pioneiro do pensamento político, dentro do campo teórico em que se inscreve, não fosse dever-se-lhe o mérito suplementar de ter sido ele, isolada e solitariamente, a introduzir a tematização e discussão destes temas em Portugal.
2. Notas de Leitura
Defende este pensador oitocentista, acabamos de o ver, que o comércio internacional seria o cimento da paz – na Europa, sans doute.
A tese é original, quando situada na época em que foi defendida.
Desde o século anterior, com Adam Smith, e, décadas mais tarde, com Stuart Mill e David Ricardo, o comércio internacional aparece no centro do desenvolvimento económico.
Mas nem mesmo Ricardo sustentou a relação directa e necessária entre comércio internacional e paz. Para todos estes autores, o caminho traçado pelo comércio internacional seria longo e levaria a muitas paragens, não sem antes proporcionar desenvolvimento económico e prosperidade a todos aqueles que conseguissem fazer prevalecer as suas próprias vantagens competitivas.
Uma dessas paragens seria, precisamente, a prevalência da paz entre os Estados porque, premissa de que não duvidavam, povos prósperos não se guerreiam. As teses sobre o imperialismo, ainda que distorcidas por lunetas ideológicas, aí vieram para demonstrar que entre a paz e a guerra havia mais que estômagos satisfeitos.
Esta ideia de que paz e prosperidade vão de par, fortemente enraizada ainda nos anos '60 (com a década para o desenvolvimento da ONU), suscita várias reflexões.
A primeira é a de ilibar os referidos pensadores da acusação de miopia (irremediavelmente burguesa, segundo Marx), se não mesmo de confiança cega em preconceitos vitorianos. Quem não tenha o hábito de pensar o futuro para mais tarde se rir das suas próprias ingenuidades, que atire a primeira pedra. Porque, nos primórdios da revolução industrial – esse solavanco que iniciou um processo de desenvolvimento sustentado, como hoje se diria – duas realidades se iam tornando cada vez mais nítidas:
1. Uma, as profundas diferenças em matéria de bem-estar e, em especial, a miséria daqueles que, arrancados à servidão da terra e desapossados de tudo, já não tinham economia de subsistência onde se refugiar.
2. A outra, a erosão das barreiras que, até então, tinham isolado o poder e a riqueza.
Na verdade, as mudanças de fundo não aconteciam tanto na possibilidade de acumular riqueza, pois isso era já comum desde a Baixa Idade Média, mas na protecção que o soberano passava a conferir, em geral, à riqueza acumulada, permitindo que ela fosse pacificamente obtida, pacificamente fruída e pacificamente transmitida.
Dito de outro modo, começava a ficar ao alcance de quem não beneficiava dos favores pessoais e imprevisíveis do poder soberano a oportunidade de acumular um património preferentemente não-fundiário e, em seguida, de iniciar uma linhagem que assegurasse a continuidade desse património.
É certo que, já antes, o jogo político passava pela trilogia: riqueza-poder-linhagem. Mas, até então, a riqueza era sobretudo fundiária, logo dificilmente divisível; a sua posse dependia principalmente do poder que exibisse quem a detinha; e a sua transmissão estava longe de ser facilitada (o regime dos morgadios revela, por antítese, como era difícil preservar e transmitir intacta a posse da terra).
O aparecimento de uma riqueza de raiz mobiliária que podia ser dividida facilitou as coisas – e, de algum modo, contribuiu para alicerçar o Estado de Direito, no qual o poder era cada vez menos uma vontade arbitrária e cada vez mais um corpo de regras gerais e abstractas, as iniciativas que levavam à acumulação de riqueza não conheciam entraves e as linhagens, agora de cavaleiros-de-indústria e de comerciantes-de-dinheiro, podiam ser iniciadas pacificamente.
Esta conjugação de afluência e de mobilidade social ascendente (em que o casamento desempenhou um papel fulcral, dando àqueles que só dispunham de riqueza ou poder recentes o acesso imediato a linhagens de longa data, e restituindo riqueza e poder àqueles que já nada mais possuíam excepto as suas linhagens) criou uma dupla convicção
Em primeiro lugar, só não ascenderia socialmente quem, de todo em todo, fosse despojado de mérito pessoal, quem fosse a excepção (daí as tentativas de Pareto, Walras, Jevons para provar a existência, já não de uma “mão invisível”, mas de um “óptimo social” indissociável da livre iniciativa).
Em segundo lugar, todos os que ascendessem seriam réplicas perfeitas daqueles que já tinham atingido a prosperidade (esta convicção ainda hoje persiste nas mentes bem-pensantes, como se a evolução social fosse um carreiro de formigas).
A conclusão de que a paz seria o resultado lógico da prosperidade seguia-se, como é bem de ver.
Uma outra reflexão leva-nos a detectar um erro de perspectiva histórica.
Na altura, não houve a percepção de que a prosperidade tinha ainda uma base eminentemente territorial (os processos industriais eram ainda rudimentares e os ciclos de produção demasiado curtos) e que, por esse facto, aumentaria com a ampliação do território que para ela contribuísse.
Foi a fase dos impérios coloniais, da expansão geográfica, do desenvolvimento económico extensivo e da formação de blocos económicos de cariz nacional, fase que veio revelar à saciedade como os prósperos podiam ter interesses divergentes, se não mesmo conflituantes.
Esta fase teve três andamentos distintos. Um primeiro, de alastramento, que não punha ainda em causa a premissa, levou as potências expansionistas a capturarem para os respectivos territórios de exclusividade povos e territórios periféricos, subjugando os interesses locais que se lhes opunham. Um segundo, de contenção, em que as potências expansionistas entravam em choques pontuais, por vezes muito violentos e quase sempre por entrepostos actores, nas franjas dos respectivos territórios de exclusividade (Guerra da Crimeia, Campanhas Afegãs e Guerra Russo-Japonesa, por exemplo). Por fim, o choque frontal entre potências expansionistas, visando a eliminação radical de competidores (Guerra Civil Americana, Guerra do Ópio e Grandes Guerras europeias; a Guerra do Pacífico foi iniciada pelo Japão como um segundo andamento, mas foi conduzida pelos Estados Unidos como um terceiro andamento).
A paz – aquilo que a simples prosperidade manifestamente não conseguiu garantir, como esses quase cem anos que se iniciaram com a Guerra Civil Americana demonstravam sem cessar – foi procurada pela ONU em diversas vertentes, uma das quais justamente o comércio internacional, através da OECE/OCDE, do GATT e, mais recentemente, da WTO.
A teoria sobre a contribuição decisiva do comércio transfronteiriço para a prosperidade mundial é abundante. Mas só muito recentemente o comércio internacional tem sido visto, não pelos teóricos da economia, naturalmente, mas pelos teóricos da política, como um instrumento da paz (de que as adesões da Rússia e da República Popular da China à WTO são excelentes exemplos).
Ora, neste aspecto, o visconde de la Figanière é de facto um percursor.
Todavia, tal como os pensadores que acima referi se equivocaram, por não terem visto com clareza todas as cambiantes da prosperidade, também este aristocrata se equivocaria se visse no crescimento do comércio internacional um indicador seguro da paz.
Uns não ponderaram devidamente o facto de as tecnologias conhecidas terem ainda um ciclo demasiado curto para fazer com que a malha das interdependências económicas se apertasse. E também descuraram o que significava uma distribuição demasiado desigual dos níveis de desenvolvimento económico e das matérias primas que os proporcionavam – cenário que incentivava a criação de áreas de exclusividade.
Ao outro, escaparia o facto de, sob a designação de comércio internacional, se acolherem realidades muito diversas: desde as correntes comerciais típicas do período de desenvolvimento extensivo (fluxos paralelos entre metrópoles e territórios exclusivos, pondo em circulação daquelas para estes últimos bens que incorporam tecnologias de ponta e capitais, recebendo, em retorno, matérias primas, bens produzidos com tecnologias rudimentares ou já maduras, e rendimentos de capitais) até aos padrões de comércio próprios de economias que se interpenetram em todas as fases dos respectivos processos produtivos e na movimentação dos capitais.
Só neste último cenário é que se pode admitir que um tal grau de interdependência “simétrica” faria com que qualquer agressor estivesse a dar um tiro no pé – na medida em que não conseguiria ficar imune aos danos que infligisse no seu adversário.
Este, aliás, um argumento forte para quem propugna pela globalização – pois só ela poderá conduzir a um cruzamento de interesses interestaduais de tal modo denso que seria insensatez rompê-lo.
Duas notas finais.
A tese do Visconde de la Figanière vem afirmar que, num cenário de intensas trocas de bens, serviços e capitais (e implícitamente de pessoas), não é sensato iniciar uma guerra – mas a arte da guerra é, justamente, a ciência da insensatez.
A insensatez pode, também, ser sensata – o que no caso da tese em apreço significa fazer a guerra sem a destruição do adversário, ou seja, mantendo intacta a capacidade produtiva do oponente e preservando os seus meios de pagamento internacional.
Não é preciso, portanto, grande imaginação para ver como, no quadro de uma economia global, a guerra poderia (poderá?) ser conduzida sensatamente. No entanto, nada disto diminui o mérito que a Figanière pertence por inteira justiça. Foi ele, como parece, o primeiro a ver que é preciso, no plano relacional, algo mais do que a prosperidade para nos aproximar, a todos, da paz.
Algés, Março – Junho 2003
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