Nos dias que correm tem havido muitos debates apaixonantes sobre a mocambicanidade, debates estes que reflectem preocupações, inquietações, envolvendo sobretudo académicos que procuram dar o ponto da situação das identidades em Moçambique sobretudo dos conflitos a eles subjacentes.
Decidi dar uma pequena contribuição a estes debates trazendo à baila questões ligadas representação social da mocambicanidade através de nomes ou seja de apelidos. Achei pertinente fazer isso porque penso que muito se tem dito entre nós moçambicanos que “este tem nome de branco, aquele tem nome de monhé e esse tem nome africano” e assim por diante, sem nos interrogarmos sobre o que está em causa e as consequências emocionais desses discursos.
Antes disso gostaria de me colocar uma questão pertinente? Porque as identidades são importantes? Parece uma questão muito simples. Mas não o é. E importante porque todos nós procuramos amparo nalguma colectividade para nos sentirmos parte integrante dela e assim sentirmos legitimamente integrados. Sentimos confortável quando ancorados num barco de identidades. Mas será que as identidades só se resumem ao simples facto de pertencer à uma determinada colectividade? Não, penso que a questão de identidade é muito mais séria do que isso. É uma questão vital, porque mexe com a própria vida das pessoas, no sentido de que mexe com as suas crenças, gostos, etc. Toca-os profundamente, principalmente quando acreditam que pertencem à alguma colectividade e depois descobrem ao fim ao cabo que não são aceites de igual modo nessa comunidade. Ora vejamos se nascemos da mesma mãe, isto é, da mesma nação, da mesma pátria, pese embora os nossos pais tenham-nos dado designações diferentes de acordo com as suas preferência, gostos, influências, somos de igual modo compatriotas, quer dentro ou fora deste espaço.
Só para ver meus caros compatriotas que não só as regiões, as raças, as etnias são categorias usadas para traçar fronteiras entre o ‘‘nós’’ e os “outros” mas também os apelidos. Como isso acontece? Se prestarmos atenção aos nossos apelidos notaremos que existem apelidos de várias origens: africana, portuguesa, asiática, e por ai em diante. Dentro destes apelidos quais é que podem ser considerados moçambicanos de verdade? Ou seja pelo apelido somos todos moçambicanos ou não? Eis a questão que certos sectores da sociedade, vão me desculpar pelo tom anónimo, tentam dar resposta partindo das representações, isto é, imagens daquilo que pensam e acreditam ser um verdadeiro africano, e no caso particular à partir de um simples nome de família. Os apelidos de origem africana são vistos à partir destes como tendo raízes, isto é, são originais, originais no sentido de possuir características daquilo que consideram cultura africana, tradição africana derivados das línguas nacionais, isto é, locais, os restantes são vistos como não tendo raízes neste Moçambique, alheios à nós, frutos da alienação colonial destes desenraizados. Se por acaso, pegarmos em num grupo de moçambicanos, residente na cidade de Maputo e perguntarmos os seus apelidos? As respostas vão variar entre Manhiça, Gonçalves, Rafael, Langa, Matsinhe, Mohamed, Chin etc. Efectivamente estes apelidos tem uma origem que não pode ser ignorado: uns podem ser ou melhor são de origem africana ( Manhiça, Langa, Matsinhe por exemplo) europeia ( Gonçalves, Rafael) e asiática ( Mohamed, Chin). O que os torna problemático são as possíveis associações destes com a cor da pele, ou seja com as raças e o consequente estranhamento daqueles que não apresentam características próprias daqueles que as possuem. Ou seja os apelidos não só têm língua como também têm cores, tem raças. E as pessoas que levam estes apelidos também devem ser parecidos com eles. Os apelidos considerados originais, de raiz, africanos de facto são vistos como sendo legítimos para pessoas de raça negra, porque o negro é que é africano de facto. Os apelidos portugueses são considerados como acidentais para pessoas de raça negra, normal para pessoas de pigmentação mais ou menos clara, digamos descendentes de portugueses. Mas a partir do momento que o são normais para estas pessoas, são vistas não como moçambicanos mas como portugueses. Os apelidos de origem árabes são vistos às vezes como originais se por exemplo se tratar de um indivíduo de raça negra da região nordeste do país. Esta é a aparente contradição porque estes apelidos desta região são de origem árabe -persa.
O problema desses apelidos não é o facto das pessoas saberem apenas que um determinado apelido tem esta e aquela origem mais de traçar fronteiras de identidade entre “os nossos” e “os deles”. Senão vejamos o caso por exemplo de apelido de origem portuguesa, para uma pessoa de raça branca, digamos que para um leigo faz sentido que este tenha esse apelido porque é branco, logo como é branco e o apelido de origem portuguesa, não é moçambicano, pertence mais as bandas da ocidental praia lusitana, isto é, do ponto de vista dos apelidos. Ao contrário para um individuo de raça negra com um nome de origem portuguesa, aí que é problemático. Vão dizer por exemplo que tens de procurar as suas raízes porque isto não próprio de um africano, estas perdido. Se for um apelido de origem asiática dirão que este não é moçambicano, é monhé, paquistanês, árabe, indiano, china, sobretudo se estamos perante à uma pessoa de pigmentação clara.
Depois de me ter debruçado sobre as representações de um grupo cujo a mocambicanidade lhes é rejeitada devido aos seus nomes de família que carregam nos seus documentos, resta-me falar sobre àqueles que se orgulham de serem africanos originais e por conseguinte moçambicanos de raiz pelos simples facto de se chamarem por exemplo por Mabjaias, Matsinhes, Tembes, Langas, Mazulas, etc. Estes respiram de alívio, respiram um ar de originalidade, de ter os pés bem assentes em Moçambique, por conseguinte em Africa. Quando numa aula de sociologia da família sugere-se por exemplo que se faça um estudo sobre a sociologia dos apelidos em Moçambique, não está-se senão a referir e quase exclusivamente a estes apelidos.
Ora com esta constatação pretendo mostrar que, ligar certos apelidos à uma eventual mocambicanidade é mostrar uma certa ignorância quanto aos processos históricos da sua constituição. Moçambique infelizmente ou felizmente sofreu muitas influências de outros povos em todos sentidos: estiveram aqui primeiro os árabes e indianos, por isso não me perguntam donde vem a maioria dos apelidos da gente da região costeira de Moçambique. Logo o argumento de originalidade e de raiz africana não faz sentido apelar aqui. Mesmo porque por pensar que são originais de África em nenhum momento se pós em causa a mocambicanidade destes povos. Talvez porque os seus apelidos diluiriam -se, digamos assim, africanizaram-se como foi os casos das capulanas, das bananas etc. Mas tarde passaram os portugueses e deixaram uma forte influência no que concerne aos apelidos sobretudo na região do vale do Zambeze. Aqui nesta região os apelidos dominantes são de origem portuguesa, e é aí onde está uma das contradições do ser moçambicano. Como é possível um empregado de raça negra, rural que mal fala português se chamar António dos Santos Pinto? Eis a negação da influência colonial portuguesa, na constituição dos apelidos dos actuais moçambicanos. Mesmo que isto tenha sido fruto de uma civilização/assimilação da cultura portuguesa forçada que fomos submetidos no período colonial, não deixa de constituir parte integrante na constituição do nosso.
Devido à estas influencias exteriores não é possível fazer apelos à raízes e originalidades nos apelidos para legitimar que sou ou não moçambicano, porque a mocambicanidade neste sentido é resultante deste embate de originalidades portuguesas, africanas, asiáticas cujo resultado disso é o desaparecimento de uma única originalidade legítima e constituição de uma pluralidade de originalidades legítimas e a constituição de uma mocambicanidade legítima para todos. Assim não sobra nenhum moçambicano que ora é português, paquistanês, chinês ou indiano, apesar da compreensão destes apelidos fazerem sempre apelo as suas influências. Não pretendo negar que a maioria de moçambicanos é de origem “bantu-africana”, mas mostrar que a moçambicanidade é feita destes e daqueles, pese embora estes últimos sejam a minoria. Do mesmo jeito que a língua portuguesa tornou-se moçambicana, os seus apelidos não devem ser vistos como se fossem estranhos porque não é possível apagar ou recusar a história e consequentemente as influências do passado. As influencias são parte integrante da constituição do nosso presente e não necessariamente uma forma de encontrar estranhos dentro de nós. Os apelidos dos brasileiros por exemplo são de origem portuguesa, italiana, espanhola e alemã e francesa, mas nenhum desses brasileiros consideram-se português, italiano, espanhol, alemão, ou francês, nem se quer procuram encontrar não brasileiro pelo apelido, ou mesmo pela raça. A maioria dos apelidos dos angolanos são de origem portuguesa mas nunca acompanhei caso de estranhamento e da busca daqueles que são originais porque poderia –se pensar assim: se nós chamamos-nos assim como os portugueses então não somos angolanos. Se herdarmos a língua porque não poderia acontecer com os apelidos - não falo de nomes porque estes, nem sequer põem em causa mocambicanidades, são pacíficos. Ora se pudéssemos escolher entre apelidos considerados originais e apelidos dos outros quem sabe com plena consciência daquilo que é nosso, e da necessidade de valorizarmos, poderíamos escolher os originais, mas como disse Marx, os homens fazem a história, mas não fazem como querem mas fazem sobre circunstâncias legadas por um passado histórico. Mas poderíamos agora que sabemos que estes apelidos não são nossos escolher ou mudar de apelidos. Mas quem foi que vos disse que a mudança de uma identidade construída à décadas pode mudar da noite para o dia? O indivíduo não é tão livre como diria um Sartre, ele faz parte de um conjunto de instituições que lhe colocam opções ao mesmo tempo sanções.
Tentei ao longo destes parágrafos não ir ao fundo ou esclarecer os conceitos de mocambicanidade e apelido mas deixar um apelo a uma outra dimensão da clivagem identitária em Moçambique, para além da etnia, região, raça, que afecta sobretudo as bases da construção na nação moçambicana.
Por: Francisco de Carvalho