Secção CULTURA
E. Macamo
Notícias - 15 de Setembro de 2004
O simpósio já ia no segundo dia. Fora convocada pela Fundação Amílcar Cabral, financiado pelo governo cabo-verdiano, pela Fundação Mário Soares e pelo CODESRIA -Conselho para o Desenvolvimento das Ciências Sociais em Africa e frequentado por políticos, veteranos da luta
armada de libertação nacional de Cabo Verde, Guiné Bissau, Angola e Moçambique, viúvas de heróis tombados, académicos, estrangeiros solidários com as lutas anti-coloniais, jovens e, como se diria em
Moçambique, outros penduras.
Em dois dias de conferência feita de mensagens de solidariedade, comunicações científicas sobre a vida e obra de Amílcar Cabral, sobre o significado da emancipação política, económica e social de África o
evento ameaçava tomar-se uma coisa enfadonha. Enfadonha não no sentido de aborrecida. Também não no sentido de pouco estimulante.
Na verdade, o simpósio, que foi organizado por ocasião do octogésimo aniversário natalício da grande figura política e intelectual que foi Amílcar Cabral foi, do ponto de vista intelectual, mais do que
estimulante. Participaram nele académicos de alta craveira provenientes de vários quadrantes, estiveram também presentes veteranos da epopeia anti-colonial, documentos ambulantes e importantes do devir de Cabo Verde, da Guiné Bissau, de Angola e de Moçambique. A presença de São Tome e Príncipe passou despercebida. O simpósio ameaçava ficar enfadonho porque, afinal, não era propriamente sobre Amílcar Cabral. Cabral foi apenas a desculpa. O simpósio era uma celebração do bom-senso, da prudência e do patriotismo cabo verdianos.
Quem aterra no aeroporto internacional Amílcar Cabral, na ilha do Sal, e vê aquela paisagem lunar, sem vegetação, sem água doce, sem nada senão gente diligente e integra, não pode acreditar que esteja a
pisar solo dum país africano com rendimento médio. Cabo Verde não tem terra arável em abundância, não tem petróleo, não tem minerais, não tem mais nada senão gente diligente e íntegra. Não ocupa uma posição geo-estratégica de interesse, a não ser como porto e aeroporto de abastecimento para embarcações transatlânticas. Cabo Verde só tem gente diligente e íntegra.
E essa gente diligente e íntegra tem estado a gerir o pouco que o país tem e recebe de quem o quer bem, mas também da bondade e patriotismo da sua larga diáspora com um bom senso e prudência
ímpares em Africa E os resultados estão visíveis em todo o lado. 0 nível de vida é suportável. O salário mínimo está acima de 100 dólares americanos, quase ninguém morre de fome, o aparelho estatal
funciona e a democracia enraíza-se cada vez mais.
Esses resultados estão tão visíveis que para quem vem dum país africano normal, Cabo Verde chega a irritar. Irrita ver um país africano que funciona. Ainda para mais um país enteado da natureza.
Irrita porque obriga a procurar desculpas para o próprio atraso: a colonização foi diferente; são poucos; nunca tiveram guerra; têm uma oposição responsável; não têm vizinhos maus, etc. O problema é que as desculpas não explicam porque uns países são capazes de aproveitar o que têm e outros não. Porque Cabo Verde tira melhor partido do que não tem e Angola não, para usar um exemplo convenientemente distante.
Então no segundo dia dos trabalhos do simpósio, cuja abertura oficial fora na Assembleia Nacional com discursos do Presidente Pedro Pires e dos ex-presidentes Aristides Pereira e Mário Soares, houve cortes
consecutivos de energia no hotel Praia Mar de quatro estrelas, local onde decorria a maior parte dos trabalhos. Parecia Maputo nos anos oitenta. Esses cortes de energia salvaram as relações entre os
hospitaleiros e eficientes anfitriões cabo-verdianos e uma boa parte dos hóspedes africanos. Afinal, constataram muitos, há coisas que correm mal em Cabo Verde. É curioso como cortes de energia podem tomar um país mais simpático.
Amílcar Cabral foi, talvez, o nacionalista das ex-colónias portuguesas mais brilhante do ponto de vista intelectual. Ainda bem que não era do sul de Moçambique, senão não dava para dizer.
Ele reflectiu o nacionalismo, a luta anti-colonial, o marxismo, o renascimento cultural africano bem como o futuro social, económico e político do continente de forma intelectualmente rigorosa e coerente. É uma referenda obrigatória para todos quantos no mundo das ciências sociais africanas hoje procuram interrogar a condição do continente. As suas reflexões, fruto dum compromisso inabalável com a análise
crítica e com a realidade do seu país, são uma referência obrigatória para filósofos, sociólogos, críticos literários e todas quantos dão importância ao pensamento cítrico.
Durante o simpósio repetiu-se muito uma máxima de Cabral, nomeadamente "pensar com as nossas próprias cabeças, a partir da nossa própria realidade". O desenvolvimento pós-colonial de Cabo Verde parece ser a aplicação prática dessa máxima. Não é que a máxima seja filosoficamente brilhante, até porque no seu fundo parece trivial, mas quando entendida no contexto do que os cabo-verdianos fizeram do seu país, ela ganha novos contornos e significados.
O simpósio, portanto, foi uma celebração das realizações de Cabo Verde. Foi uma oportunidade que o país se brindou para mostrar o que a diligência e a integridade são capazes de alcançar. O simpósio foi,
também, a cerebração duma geração. Só vendo Marcelino dos Santos, Aristides Pereira, Pedro Pires, Luís Cabral e tantos outros membros desta geração em conversa familiar e íntima para apreender a verdadeira dimensão do cruzamento de biografias que foi a luta pela independência. Mesmo a CPLP ganha novo significado quando vista a partir dos laços tecidos na luta anti-colonial.
A língua portuguesa fica pequena demais para dar conteúdo e substância ao que liga estes países todos, incluindo mesmo Portugal e Brasil. Moçambique esteve presente em peso. Para além de alguns académicos, dentre as quais o reitor da UEM, Brazão Mazula, e da antropóloga Paula Meneses, encheu a sala de conferências a figura de Marcelino dos Santos, cujo ar descontraído e jovial indicava fortemente que ele se encontrava no seu meio. O grande convidado de honra foi o Chefe de Estado moçambicano que apresentou uma comunicação em que, entre outros, instou os intelectuais africanos a darem o seu contributo para o desenvolvimento de Africa.
O simpósio fechou com uma noite cultural em que um grupo integrando amadores - até deputados e diplomatas - trouxe o calor da morna para emprestar a toda a ocasião a melancolia e solenidade que a recordação de Amílcar Cabral exige. Mesmo no canto os cabo-verdianos excederam-se. E aí nem houve cortes de energia. Eles cantaram, entre outras, Cabral! ka mori, Isto é Cabral! não morreu.
Alguns africanos de outros quadrantes sentiram-se tentados a dizer aos anfitriões que Cabral morreu sim senhora, mas bem vistas as coisas, espírito que motiva gente diligente e íntegra a arrancar o
bem-estar dum solo pedregoso sempre com sede de água que os céus não mandam, não pode estar morto. Ate certo ponto, Cabo Verde é um país impossível.