Por ÁLVARO MANUEL DE ARAGÃO PEREIRA DE ATHAYDE
PÚBLICO - 19 de Setembro de 2004
Timor passou de moda. Ouvi-o dizer em Dili, em Julho. Voltei a ouvi-lo dizer em Lisboa, em Agosto. Passou? Se calhar passou! E porque não passaria? O processo correu relativamente bem. A ONU está a desmontar a tenda. O que Portugal tem a fazer é desmontar também a sua. Até porque "aquilo" não interessa a ninguém, dizem. E só dá despesa, dizem. E é dinheiro deitado à rua, dizem. E é muito longe, dizem. E há outras prioridades, dizem. E o interesse nacional não passa por lá, dizem. E dá muita despesa, repetem. E é dinheiro deitado à rua, repetem. E se calhar até têm razão... Mas dói-me! Dói-me porque os timorenses pedem muito pouco. Pedem a língua e quem a ensine. Só isso. Mas esse "só" para eles é imenso. É "só" a diferença entre a vida e a morte. Se voltarem ao bahasa são absorvidos pela Indonésia. Se passarem ao inglês são absorvidos pela Austrália. Só sobrevivem em português. Por isso o adoptaram. Por isso pedem professores portugueses. Eu ouvi o Primeiro-Ministro pedir professores portugueses. E o Ministro da Educação pedir o mesmo. E a Vice-Ministra da Educação também. E o Vice-Ministro da Defesa. E vários Deputados. E o Reitor da Universidade Nacional de Timor-Leste (UNTiL). E vários professores timorenses da dita Universidade. E os meus alunos de Engenharia Informática. E os de Engenharia Electrotécnica. E alunos de outros cursos e outros professores. E pais de alunos. E pessoas que encontrava aqui e ali. Em Dili e nas montanhas. E um homem a quem, na zona de Ermera, perguntámos o caminho para umas certas lagoas. E com quem acabámos por ficar à conversa bem mais de uma hora. A propósito de um nicho com um Santo António de Lisboa que estava naquela bifurcação de caminhos. Tinha data de 1987 o nicho. Feito em pleno período indonésio. Uma "questão de identidade" explicou o homem. Num português impecável. Os indonésios não nos deixavam falar português mas respeitavam a religião. E um antigo enfermeiro que, estando nós a visitar o Cemitério de Santa Cruz, nos veio explicar o que devia ser mais que muito manifesto que não percebíamos. Que aquela estranhíssima campa era uma vala comum. Onde tinham sido enterrados os corpos das vítimas dos massacres de Agosto de 1975. Os da UDT e os da FRETILIN. Tudo à mistura. E que ninguém sabia exactamente quem lá estava enterrado. Mas que aquela era, em Dili, a campa dos desaparecidos em Agosto de 1975. E que todos os que tinham tido familiares desaparecidos nessa época ali vinham pôr flores e velas. E que vinham todos. Os da UDT, os da FRETILIN, os da APODETI, os de coisa nenhuma. Tudo à mistura. Que se os mortos estavam à mistura não havia razão nenhuma para que os vivos o não estivessem também. E perguntado sobre o que estava ele a fazer no cemitério lá nos disse que estava a fazer o funeral de um filho. E mais disse que queria mandar um recado para Portugal. Eu sou escuro e o senhor é claro. Mas somos o mesmo povo. Veja os nomes nas campas. São nomes portugueses. E eram. Os mais antigos que vi com datas de mil oitocentos e pouco. Somos o mesmo povo, disse. Mandem mais professores. Do que mais precisamos é de professores. Os indonésios fizeram-nos muito mal. Não nos deixavam falar português. A juventude quase não sabe falar português. E isso é muito mau. Digam lá em Portugal que mandem professores. Do que mais necessitamos é de professores. Este foi o recado. O homem estava a enterrar um filho. Nós estávamos a olhar para uma campa estranhíssima. Aproximadamente quadrada. Para aí com uns dois metros e meio de lado. Coberta por uma placa escura. Preta. Preto de queimado. Ao meio uma cruz com uns dois metros altura. Preta. Também de queimado. A placa coalhada de velas e de pétalas de flores. Velas acesas e pétalas frescas. Só fazia lembrar uma coisa hindu. Mas não podia ser. A nossa perplexidade deveria ver-se, ouvir-se, cheirar-se. E o homem largou o funeral do filho e veio explicar-nos o que aquilo era. E como tinha sido em 1975. E que o coronel médico não queria sair do hospital. Que não queria abandonar os doentes e os feridos. Que não queria ir para Ataúro. Que teve de ser levado debaixo de prisão. Disse o nome do médico mas eu não fixei. Aliás disse imensos nomes. De pessoas e de lugares. Bem mais que duas dezenas. Que a este tinha acontecido isto, tinha fugido para ali e tinha sido morto acolá. Que àquele tinha acontecido aquilo, tinha fugido para tal sítio e tinha sido morto naqueloutro. Histórias umas a seguir às outras. Todas muito semelhantes. Só diferiam no desfecho. Havia as do tipo "nome, fugiu para, morreu em" e as do tipo "nome, fugiu para, conseguiu escapar". Ele estava entre os que tinham conseguido escapar. Com uma perna partida e um tiro no peito. Mostrou a cicatriz. No fim daquilo tudo ficaram os corpos. Nas casas, nos quintais, nas ruas, nos campos, nas ribeiras. Corpos por todo o lado. A apodrecerem e a serem comidos pelos cães e pelos porcos. E que depois os tinham recolhido a todos. Ou ao que deles restava. E que os tinham enterrado a todos. Ali. Tudo à mistura. E que agora lá iam aqueles a quem tinha desaparecido algum familiar nessa altura. Iam ali. Porque ali estavam todos. Tudo à mistura. E que se os mortos estavam à mistura os vivos também podiam estar. E que tinha um recado para Portugal. E que o recado era que mandassem professores. E agora dizem-me que Timor passou de moda e que mandar professores é muito caro. Quanto custa mandar um professor para Timor? Cem contos mês? Quinhentos contos mês? Mil contos mês? Cem parece-me claramente pouco. Mil parece-me claramente muito. Vou raciocinar na base dos quinhentos. Quinhentos por mês dá sete mil por ano. Por professor. Se forem cem professores dá setecentos mil contos por ano. Se forem mil professores dá sete milhões de contos por ano. Trinta e cinco milhões de euros. É muito dinheiro? Para mim é! Nunca na vida vi sete milhões de contos. Nem trinta e cinco milhões de euros. Nem espero vir a ver. Assustava-me! E para o Estado? Será que para o Estado trinta e cinco milhões de euros é muito dinheiro? Será que Portugal não tem capacidade financeira para pôr em Timor mil professores por ano? Durante, por exemplo, dez anos? Tem? Não tem? Não sei. Mil professores chegam? É pouco? É muito? Não sei. Dez anos chegam? É pouco? É muito? Não sei. Mas uma coisa sei! Deram-me um recado. Um recado que, parece-me, não é de uma, de duas, de três pessoas. Um recado que, parece-me, é de todo um povo. E o recado é "Mandem professores."
Professor FUP/UNTiL nos Quartos Bimestres de 2002/03 e 2003/04