Proibido de votar
William Tonet
Os povos do meio, são aqueles marginalizados e discriminados pelo regime no poder. São milhões de aborígenes que não aceitaram a assimilação, a alienação, a aculturação, mas nunca recusaram a socialização abrangente. São povos que vivem a margem das estatísticas oficias e não contam em nenhum relatório oficial. Estes milhões estarão, propositadamente, impedidos, mais uma vez, de votar, nas próximas eleições gerais. Ao que tudo indica o único culpado parece ser o regime no poder. Se os partidos da oposição aceitarem ir a votos, apoiando esta pouca vergonha, então serão cúmplices da marginalização e da cabala governamental, que ostraciza milhões de indígenas autóctones. É preciso regular esta lamacenta situação que convive na margem fronteiriça de cada um de nós.
O Wandalika é um menino autóctone original. Ele faz de cada animal um dado para as suas brincadeiras de infância, no meio de uma selva, que ele domina numa surpreendente cumplicidade com cada bicho, que não o é, na sua óptica mais do que um amigo sincero. Wanda decifra cada gemido, cada grito, cada passada de um qualquer animal selvagem. Das aves, basta um simples assobio e ela poisa, lá, onde ele quer. São enigmas complicados, para quem faz da civilização ocidental a única porta referencial, para a superioridade da vivência humana.
Ledo engano.
Os dados e a prática quotidiana demonstram, afinal a existência possível de outras formas vivências muito mais humanas e humanizantes. Aqui, nos confins territoriais, onde o vento faz a curva, e habita o primeiro povo angolano não existe a ausência. O vazio. A morte ou o desespero do «homini-autóctone». O fatalismo e o pessimismo não fazem parte do dicionário aborígene, que comunicaliza estas gentes, unidas umbilicalmente às terras que carregam o sangue das suas secundinas e as viu nascer.
Aqui há Sul. Terra farta, floresta, estepe e muita vitalidade. Aqui existe sangue que corre e escorre pelas veias daqueles que fazem do sol e do luar, os ponteiros do relógio, que alimenta a ânsia das suas vidas. Autoctonamente falando aqui há vida! Muita vida!
Uma de muitas vidas alegres e normatizadas na base dos pressupostos culturais e tradicionais de sobrevivência, mesmo diante de uma adversidade imposta, desde 1975, pelas novas, mas já velhas autoridades, que substituiram as coloniais, mas nada inovaram em relação a um drama que se arrasta...
Estamos diante do paralelo 0. Aquele que faz da omissão deliberada do Governo uma forma de agir e de estar, na gestão da coisa diária do território.
Poder vota-os ao ostracismo
É preciso que as responsabilidades na condução dos destinos do Estado permitam a sobrevivência e a protecção dos direitos humanos de todos os seus povos e gentes. "Estamos contentes que nos tenham vindo ver.
Não temos ajuda. Somos vistos como animais", disse amargurado um San de Viskote, enquanto um outro de Tsholo, afirmou; "não queremos regressar a Muhamba por causa do problema da comida".
É vergonhoso e doloroso, saber, que quando se aprestam muitos cidadãos para depositar, pela segunda vez, os seus votos nas urnas, para decidirem quem vai dirigir os destinos de Angola, nos próximos anos, ainda gravitem no território povos excluídos e discriminados. Gentes que vivem escravizados por outros, para poderem sobreviver, com o minímo de dignidade.
"Esta terra é nossa. Os vizinhos reconhecem que é nossa. Mas nós não temos nada e dependemos deles. Por isso, eles oprimem-nos, mas no livro está escrito que nós somos os primeiros angolanos", asseverou um autóctone de Ntopa, Kuando Kubango. Mais dramático é o testemunho do San de Cafima, Cunene: "resta-nos agora a parte mais pequena da nossa própria terra. Se não tivermos sem,entes, ferramentas e gado para arar, eles levam-na toda. Eles veêm que nós não fazemos campos grandes. Não podemos dizer que eles reconhecem os nossos direitos à terra".
O Povo San é tratado como marginal, pelas autoridades, quando constituem uma nação com mais de 10 mil autóctones, distribuídos por 43 comunidades, habitando no meio das províncias da Huíla, Kuando Kubango, Cunene e do Moxico.
"Pagam-nos com a comida que temos que comer para trabalhar. Não nos dão comida para comermos enquanto trabalhamos. Não me tratam bem. A minha força é é para os outros. Não me resta nada", lamenta-se o homem de Kakwa, Huíla, confirmando outro que "trabalha-se das 7 às 17h00. Se se está cansado e reclama, dizem-nos que somos preguiçosos e que devemos esperar pelo MINARS e que não nos vão pagar", confirma este autóctone em Kakombe.
As queixas de discriminação são mais que muitas; "em Tsholo, um homem foi agredido quando exigiu ser pago de acordo com o que tinha concordado com o patrão de Muhanda. Disseram-lhe «és pequeno», vamos te bater, até porque não tens onde ir reclamar".
Diante deste cenário quase surrealista, um autóctone de Cafima, gostaria mesmo sem o saber, que se cumprisse a letra a Constituição em vigor, em Angola, que considera todos iguais perante a lei. "É nosso direito receber a mesma ajuda que os outros. Queremos a mesma ajuda que o Governo dá aos Bantus".
Em cada uma das comunidades existem alguns elementos que se expressam em português. Geralmente são homens que foram arrastados a força, para servirem nas FAPLA e FAA, mas a sua língua oficial é o !Xun, mas nos documentos oficiais a ortografia está incorrectamente ocidentalizada, denominando-a de !Kung.
A sobrevivência desta nação vai, por via disso, tornando-se cada vez mais difícil, por dependerem quase exclusivamente da alimentação de subsistência produzida no interior das selvas, bem como o fabrico de mel e a caça. Mas este tipo de alimentação torna-os de tal forma vulneráveis, que para sobreviverem têm de se sujeitar ao trabalho braçal, em moldes quase semelhantes ao da escravatura. "Muitas vezes trabalhamos de sol a sol, mas no final recebemos apenas um quilo de milho, ou ainda uma bebida e se refilas de batem atoamente, porque não tens nenhum direito, nesta terra, que também é nossa".
Um agente económico do Cunene, que se serve de elementos Sun, nos seus campos, considerou-os de serem "animais, por isso têm de trabalhar como nossos escravos, única forma que têm para não morrerem de fome".
E este cenário é confirmado por um San de Vifwo, que afirma: "nós dependemos dos Bantus para trabalhar e comer.
Eles estão a desenvolver-se, enquanto nós continua-mos com fome.
A Convenção 169 da OIT–Organização Internacional de Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais em países indepen-dentes, estabelece critérios de relacionamento saudável, que se aplicados, o quadro em Angola poderia ser diferente. Artigo 6º: "os governos deveriam estabelecer meios atravês dos quais os povos indígenas possam participar livremente e a todos os níveis, na adopção de decisões que lhes digam respeito, e estabelecer as estruturas para esse fim; Art. 7º- os povos indígenas deveriam ter o direito de escolher as suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento e de controlar o seu próprio desenvolvimento social, cultural e económico; Art. 1-19- Deveriam ser recon-hecidos os direitos de propriedade e posse de terras tradicionalmente ocu-padas por povos indígenas.
Angola não ratificou esta convenção, por isso o seu Governo faz tábua rasa, ao respeito dos direitos da nação San.
A própria lei das terras é por si violadora dos direitos fundamentais dos autóctones, porquanto não reconhece direitos de terras com base na ocupação, favorecendo os interesses do capital financeiro, em detrimento das comunidades rurais e da interioridade.
Ela não reconhece o papel do direito costumeiro, logo a nação San, apesar de ser das primeiras em Angola, não tem direito, nem as terras onde vivem as suas comunidades.
Isto significa a sua ausência total de qualquer senso estatístico oficial. Lukamba Paulo Gato, recentemente, em entrevista ao Folha 8, disse temer fraude nas eleições por muitos eleitores não terem bilhetes de identidade de cidadão nacional. Mas o grave não é só isso, pois a nação San, nem registo de naturalidade e nacionalidade têm. Legalmente eles não são considerados angolanos, como tal, os serviços de saúde pública e de educação e ensino lhes é negado.
Uma situação que eleva e torna preocupante os níveis de morbilidade e a taxa de mortalidade infantil.
A luz eléctrica não faz parte da vivência tão pouco do mundo imaginário destas gentes, conhecidos como caçadores colectores.
Ela é subtilmente substituída pelo sol e o luar, ou pela fogueira que aquece as panelas e a alma das correntes frias dramatizantes do Sul.
A água este precioso líquido corre sobre as lianas ribeirinhas dos seus assentamentos e não são só a fonte da vida mas de sobrevivência deste povo que sofre as agruras do isolamento e ostracismo impostos por 29 anos de um poder que de Angola parece ter uma visão microscópICA.
FOLHA 8 - ANGOLA - Outubro2004