Estou a escrever um livro sobre a descolonização, e haverá lá algumas surpresas», diz Almeida Santos, numa conversa sobre os seus tempos livres. O trabalho será editado em dois ou três volumes («interessa sobretudo a gente a partir da meia-idade e não convém ter letra pequena»), todos ao mesmo tempo. O presidente do PS tenciona acabar o livro até ao fim do ano. «Escrevo como "réu do crime", porque apanhei muita tareia nestes 30 anos», salienta ainda, para concluir: «Nunca tive a preocupação de me defender - para isso teria de acusar alguém —, e isto não é um livro justificativo, mas apenas uma oportunidade para repor a minha verdade.»
É a escrever ( «já publiquei 26 livros, e tenho outros em preparação») e a ler que António Almeida Santos, 78 anos, casado, pai de quatro filhos e avô de oito netos, afirma passar as suas «horas vagas». E aproveita a escrita para descarregar o seu pessimismo assumido: «Sou muito pessimista sobre o futuro da nossa civilização, e acho que o pior da globalização é o cidadão globalizado, sujeito aos valores do capitalismo liberal.»
Houve tempos em que teve um hobbymsàs animado: «Quando os dedos eram ágeis, fazia umas sessões de guitarradas com os amigos.» Tocava guitarra e cantava. Os fados e guitarradas são coisas dos tempos de Coimbra, onde Almeida Santos fez o liceu e se licenciou em Direito: «Aprendi muitos acordes com o António Pinho Brojo, um catedrático que foi meu colega de liceu; e com o João Bagão, o Carvalho Homem e o José Amaral, os grandes guitarristas do meu tempo.»
Mas tocou com muito mais gente: «Toquei com o António Brojo, o Manuel Branquinho, o António Portugal, o cunhado do Manuel Alegre; conheci muito bem o António Paredes, pai do Carlos Paredes, que acompanhei em casa de um amigo comum, o dr. José Cunha; e fui também amigo do Carlos Paredes.»
De resto, as guitarradas, com a sua ligação ao Orfeão Académico de Coimbra, haveriam de determinar a vida moçambicana de Almeida Santos, entre 1953 e 74 : «Quando estava no 4.° ano da Faculdade, fizemos uma viagem por várias colónias com o Orfeão, de que eu era cantor, guitarrista e orador oficial.» Dessa viagem, saiu o seu primeiro livro — que teve duas edições. Mas o deslumbramento levou-o mais longe: «Resolvi ir viver para Moçambique, também por razões ideológicas, com a ideia de ajudar a África a emancipar-se.» Recorda que nunca cobrou um tostão aos africanos e teve clientes como Samora Machel: «Ganhei dinheiro, mas foi com os europeus.»
Depois do 25 de Abril, em Lisboa ou em Coimbra, os fados e guitarradas de Almeida Santos lá prosseguiram, com os amigos de sempre. E instituiu-se até uma celebração anual da «Tomada da Bastilha» no Casino Estoril, a 14 de Julho. Almeida Santos explica: «Houve uma "Tomada da Bastilha" em Coimbra que comemoramos sempre, e que foi o assalto dos estudantes ao Clube dos Lentes — que veio a ser depois, durante muitos anos, a sede da Associação Académica.» Mas ele já não toca aí guitarra: «Ultimamente só canto; e também lá costumam ir o Luís Gois, o Augusto Camacho e alguns outros "jovens" do meu tempo.» Almeida Santos diz que foi deixando a guitarra não só pela perda da agilidade dos dedos mas também pela morte dos companheiros: «Morreram o Bagão, o Branquinho, o Brojo, o Portugal; o Tuna felizmente ainda está vivo; mas quando morreu o José Cunha parei.»
Sente o peso da idade («estou fragilizado, não se esqueça da minha operação ao coração»), e aponta a solidão como um dos preços da longevidade: «Mas quem gosta de ler e escrever não receia a solidão.» Cita, a propósito, Raul Brandão: «Dêem-me um papel, uma caneta e um buraco e não tenham pena de mim.» E acentua logo: «Eu tenho essa mesma defesa.»
GRANDE REPORTAGEM – 20.11.2004 Pedro D’Anunciação