UMA IDA ÀS COMPRAS FORA DE PORTAS
Moçambique esteve sempre e continua a estar dependente da Africa do Sul nos mais diversos aspectos da vida social e económica. Ao contrário, os sul-africanos, embora se diga que precisassem dos portos marítimos de Moçambique para sustentar a sua portentosa economia, o facto é que, durante o período de relações tensas no pós independência deste país, eles, sul-africanos, provaram que tinham outras soluções através dos seus portos de Durban, Richards Bay e Cidade do Cabo.
A proximidade da fronteira entre os dois países (96 Kms entre Maputo e N’Komati Port/Ressano Garcia), e as boas vias de comunicação rodoviária e ferroviária existentes, aliadas também às carreiras aéreas recíprocas, tornam muito fácil o trânsito de pessoas e de mercadorias entre ambos.
Ter filhos a estudar nos bons colégios sul-africanos, ir a consultas médicas a Johannesburg, ou, simplesmente, fazer compras aos fins de semana a Nelspruit, era prática comum entre a população branca mais bafejada da capital moçambicana, nos tempos antigos. Idênticos hábitos ressurgiram depois do restabelecimento das relações entre os dois países, nomeadamente após a ascensão ao poder político de Nelson Mandela e o seu partido ANC. A nova sociedade moçambicana, agora de esmagadora maioria negra, pratica e sustenta actualmente esses mesmos hábitos numa escala ainda maior dada a evolução dessa mesma sociedade e das muitas carências que continuam a existir em Moçambique.
A nova auto-estrada, de recente construção, que liga Maputo à fronteira, tornou mais fácil a viagem de carro e o transporte de mercadorias, havendo inclusivamente várias carreiras de transportes públicos diárias que facilitam deslocações rápidas e económicas às várias cidades daquele país, incluindo Johannesburg e Durban.
Diz-se aqui que, à excepção do peixe e da fruta, que em Moçambique são mais baratos, tudo o resto compensa comprar do lado de lá. Desde os produtos alimentares, de higiene e limpeza, roupas, calçado, brinquedos, medicamentos especiais, perfumaria, mobiliário, decoração, electrodomésticos, material de informática, viaturas, etc., até aos materiais de construção, as pessoas com possibilidades de transporte próprio procuram trazer de Nelspruit, a cidade mais à mão (a 205 Kms de Maputo) já com apreciável desenvolvimento.
Na fronteira moçambicana cada cidadão tem direito a passar com artigos cujo valor não ultrapasse os 50,00 USD, havendo que pagar direitos dos restantes que eventualmente transporte. Mesmo assim, vale a pena e as mercadorias a isso sujeitas são tantas que há sempre muitos carros ligeiros e camiões bem carregados em bicha a aguardar o respectivo despacho alfandegário. Aliás, a África do Sul é o primeiro país na escala dos fornecedores de Moçambique.
Um exemplo flagrante nas diferenças de preços pode ver-se no custo de um aparelho de televisão dos que em Moçambique normalmente rondam os €400,00. Na A. do Sul compra-se por 1.800,00 Rands e paga de direitos na fronteira 300,00 Rands. Poupa-se, assim, mais de 50% visto que os 2.100,00 Rands equivalem a €175,00 (dados de um amigo que fez este tipo de compra).
Uma simples viagem a Nelspruit, para compras, mesmo que seja de ir e voltar no mesmo dia, torna-se num passeio agradável tendo em conta que a distância não é grande para os parâmetros africanos. A estrada é excelente e saindo de Maputo pelas 06,00 horas pode-se regressar pelas 19,00. Gastam-se cerca de 5 horas na viagem de ida e volta, pelo que sobra tempo suficiente (8 horas) para fazer compras e almoçar.
Poucos dias após a nossa chegada a Moçambique, fizemos aquela viagem com a família de cá, justamente para fazer compras, uma boa parte delas relacionadas com as prendas de Natal, uma tradição que aqui se leva muito a sério não só para com as crianças mas com todo o agregado familiar e amigos mais chegados.
O destino que levamos foi um centro comercial de grandes proporções, que fica nos subúrbios de Nelspruit, onde os moçambicanos se habituaram a fazer compras devido ao facto de ser considerado de alta segurança, quer no interior quer no parque de estacionamento. Existem ali os mais variados estabelecimentos com praticamente tudo o que se pretende, inclusivamente as saborosas carnes de vaca consideradas das melhores do mundo.
Ao contrário do que antigamente sucedia na África do Sul, é possível agora tomar ali uma agradável refeição com sabores mais condizentes com os nossos hábitos. Num dos vários restaurantes daquele centro comercial, onde almoçamos, alinhei num daqueles suculentos bifes de vaca que rivalizam com a melhor picanha do Brasil.
O percurso entre Maputo e Nelspruit tem uma variante de paisagens que bem despertam a curiosidade de quem gosta de admirar a natureza. Dentro de Moçambique a nova auto-estrada, que começa logo à saída de Maputo e atravessa a cidade da Matola, deixa-nos observar, até à fronteira, o adiantado estado de desarborização em que praticamente toda a região sul do país se encontra, sobretudo num raio de cem quilómetros em redor da capital. As carências de uma elevada população que reside na cidade e arredores (aumentada em mais de um milhão de pessoas depois da independência em 1975), dependente da lenha e do carvão para confeccionar as refeições e, também, o elevado consumo de lenha nas padarias, conduziu a esta situação de degradação do património florestal desta área, que não viu, nos anos mais recentes, poupados inclusivamente os importantes núcleos de florestas exóticas (eucaliptos e pinheiros) que existiam em Marracuene, Namaacha e Salamanga, hoje praticamente inexistentes.
Resta-nos a consolação de verificar que ao longo deste percurso se estão a reocupar, sobretudo na região da Moamba, as áreas pecuárias, ao contrário do que acontece no trajecto de Maputo ao Xai-Xai onde a ocupação das terras no lugar onde havia floresta nativa é mais utilizada para agricultura intensiva das populações, sujeita portanto a maior desertificação.
Transposta a fronteira de Ressano Garcia tudo é diferente. A cordilheira dos Pequenos Libombos, ao longo da qual estão estabelecidos os limites de fronteira entre os dois países, constitui uma barreira que inclusivamente altera o próprio clima. Do lado de lá e ultrapassado o terreno elevado onde as alfandegas de ambos os países se encontram, surge um espectáculo que mais parece de outro continente: encostas e montanhas revestidas de frondosas árvores e planícies verdejantes a perder de vista!
Uma agricultura bem cuidada está ali patenteada em grandes campos de produção de cana da açúcar, girassol, milho, tabaco, bananas, soja, citrinos e mangas. Por todo o lado se vêm máquinas lavrando terrenos, desinfectando pomares ou puxando grandes atrelados carregados de produtos, nomeadamente cana a caminho da fábrica de açúcar que só por si engloba a vila de N’Komati, ali bem perto da auto estrada.
As explorações pecuárias também ali marcam presença em cercados onde a vegetação nativa não é alterada. Árvores, arbustos e capins são mantidos nestas explorações porque reúnem no seu conjunto as condições ideais para a criação de gado. Este tipo de explorações, em paralelo com criações de animais selvagens, são uma constante até Nelspruit, assim como na maioria do território sul-africano ocupado por terrenos menos adequados à agricultura. Trata-se de e uma das maiores riquezas da África do Sul.
Todas as culturas que se observam ao longo dos primeiros 50 Kms no interior daquele território, giram à volta da água abundante que corre permanentemente nos dois grandes rios que atravessam a região: o Incomáti e o rio dos Crocodilos. Ambos vêm da grande cordilheira do Drykannesberg, no interior e fundem-se num só junto da fronteira, continuando o Incomáti para Moçambique onde desagua em pleno Indico bem perto de Maputo.
Ultrapassada a zona de influência da cana, pouco depois de transposta a ponte sobre o rio dos Crocodilos, a auto estrada segue pelo vale deste mesmo rio, na sua margem esquerda, ao longo de um prolongado e alto desfiladeiro que rasga o coração das montanhas de Drykannesberg. São mais de vinte quilómetros de curvas e contra curvas serpenteando ao lado de grandes precipícios com o leito do rio ao fundo, o que obriga a redobrada atenção de quem vai a conduzir. É simplesmente deslumbrante a paisagem ao longo deste desfiladeiro, tanto pela beleza do rio e da frondosa vegetação subjacente, como pela grandiosidade das montanhas onde a cada passo se vêm grandes rochedos (alguns conhecidos por nomes de animais e pessoas cujas formas grotescas aparentam, como “cabeça de coelho”, “cabeça de touro”, “bailarina”, etc.), alguns tão salientes que dão a impressão de estarem prestes a despenhar-se no fundo do vale.
Ao passar neste local neste recordo viagens antigas, quando aquela estrada não tinha as condições actuais ( era mais estreita e sem os fortes resguardos que agora tem do lado do rio). Apanhei ali alguns sustos, ao volante, quando surgiam pela frente, nas curvas, viaturas a alta velocidade e por vezes a ocupar parte da faixa que me pertencia.
Depois do vale voltam a surgir as paisagens onde se enquadram propriedades agrícolas e pecuárias, muitas delas identificadas com placas. Algumas indicam a especificidade dessas explorações e a cada passo a nossa curiosidade recai naquelas que anunciam reservas e parques de caça, que são várias nesta região a sul do célebre Kruger Park. Numa delas – Tandanani -, onde se encontra uma das maiores concentrações de rinocerontes em África, passei dois dias inesquecíveis há dois anos com o amigo Sol Carvalho, outro apaixonado pela fauna selvagem que em Moçambique é actualmente um grande senhor no panorama cinematográfico.
Ultrapassada a região de Malelane, a principal porta sul de acesso ao Kruger Park, depressa se chega a Nelspruit já que a auto estrada ocorre em terrenos planos e rectas prolongadas. Como qualquer cidade média da Europa, também aqui existem subúrbios com indústrias e, como está na moda, as grandes superfícies comerciais que atraem elevada clientela devido à segurança no seu interior.
Apesar das mudanças políticas neste país, que levaram, nos primeiros anos, a convulsões de ordem social e económica, que naturalmente afectaram as comunidades de raça branca, incluindo a portuguesa que aqui é numerosa, a África do Sul, como grande país que é, e porque está a ser conduzido por experimentados políticos, parece reencontrar a estabilidade necessária a uma melhoria de vida da sua população. Já não se nota aqui o medo que nos primeiros anos de governo do ANC aterrorizou os brancos, agora mais confiantes no seu futuro. Isto mesmo me disse um português (natural da Madeira), negociante de frutas e legumes, aqui residente há mais de 40 anos e com quem casualmente conversei quando tomava um refresco num dos cafés do interior do centro comercial onde fizemos compras em Melspruit. Ele culminou a breve conversa do seguinte modo: esta é a minha terra, dos meus filhos e dos meus netos e daqui nunca sairemos!
Regressados a Maputo, pela tarde do mesmo dia, voltamos a deliciar-se com o belo espectáculo do desfiladeiro de Drykannesberg, agora numa visão mais sombria e a descer, portanto mais afastados do precipício que tem o rio por fundo já que por estas bandas de África se conduz pela esquerda. Após esta descida, sobre uma enorme frente de aspersores de água na imensa plantação de cana da região de N’Komati, pairava um grande arco íris que nos deu mais uma imagem maravilhosa desta encantadora região.
Antes de chegarmos à fronteira lembrei-me de uma frase que li algures: Isto é África no seu verdadeiro esplendor!
Maputo, Novembro de 2004
Celestino (Marrabenta)