Na próxima quarta-feira, realizam-se as terceiras eleições legislativas e presidenciais da história de Moçambique. Neste país onde um quinto dos 18 milhões de habitantes são muçulmanos, cada vez mais estudantes moçambicanos regressam de universidades da Arábia Saudita, Paquistão e Sudão, para fazer valer a "doutrina correcta" do islão. Baseiam a sua legitimidade na formação académica, para contestar a visão das confrarias centenárias do país. Com o apoio financeiro de Estados islâmicos, abrem mesquitas, madrassas e escolas de ensino no Norte do país. Querem "curar a sociedade dos valores imorais". Este é o primeiro de uma série de artigos no momento em que se assinala uma década de multipartidarismo em Moçambique. Da nossa enviada, Ana Dias Cordeiro, na província de Nampula
Em Nampula, província que concentra mais de 70 por cento da comunidade muçulmana de Moçambique, nem toda a população está receptiva à doutrina fundamentalista que professam os estudantes de Teologia. Mas António Mahando é um dos líderes religiosos mais optimistas. Na Ilha de Moçambique, a mesquita Abu Bakre A-Sidik e a escola corânica (madrassa) com o mesmo nome são dirigidas por este homem alto e com ar distinto. A sua vontade é um dia estender as preces, fora da mesquita, aos bairros da Ilha, para fazer chegar a todas as pessoas "a mensagem do profeta".
Na mesquita, é expressamente proibido falar de política. Mas este influente líder religioso é um destacado membro do comité distrital da Frelimo e delegado na Ilha de Moçambique do Conselho Islâmico. Como ele, alguns políticos, deputados em Maputo, são membros desta organização, oficializada em Moçambique, em 1992, com o apoio da Liga Mundial Islâmica e do Governo saudita. O Conselho Islâmico defende a corrente wahhabita, dos seguidores da doutrina rigidamente puritana que rege o reino da Arábia Saudita, geralmente referida como "fundamentalista", em oposição aos ensinamentos que professam os responsáveis muçulmanos das confrarias, identificadas com o Congresso Islâmico.
A CRESCENTE INFLUÊNCIA DOS XEQUES
A mesquita-madrassa Abu Bakre A-Sidik é o único local de culto ligado ao Conselho Islâmico que existe na Ilha de Moçambique. Mas desde 1992, passou de 18 a 580 membros, diz António Mahando. Ao nível de todo o distrito, as cinco mesquitas onde se professa essa corrente contam com 1500 membros, e mais de mil alunos nas madrassas.
Seguidor da doutrina wahhabita, Mahando costuma explicar em árabe nas suas palestras na mesquita "a importância da aplicação da 'sharia'" (lei islâmica): "Queremos que a pessoa obedeça à lei divina", diz num português perfeito.
O Corão condena "a ladroagem", explica com um olhar imperturbável. "A quem rouba pela primeira vez, deve ser cortado o braço direito. Se mesmo assim continuar a roubar, corta-se a perna esquerda. À terceira vez, é a pena de morte."
É o que a "sharia" manda, defende mais do que uma vez. "O homem que comete adultério, é chicoteado em público. Se sobreviver ao castigo, é-lhe autorizado viver. A pena de morte é para a mulher. Se cometer adultério, pode ser apedrejada até à morte, ou fechada na sua casa, até morrer".
O Corão condena a "inovação", acrescenta. "Tudo o que não faz parte da tradição do nosso profeta, a nossa religião condena. As mulheres devem andar totalmente cobertas, só com a cara e as mãos a descoberto. No mês do Ramadão, é expressamente proibido as pessoas dançarem e terem qualquer actividade cultural. É o que a 'sharia' diz", insiste. "Quando há um falecimento de um irmão muçulmano, devem manter-se todos em silêncio." Faz uma pausa. "Mas não é o que acontece na mesquita vizinha", conclui.
Na "mesquita vizinha", central, dos xeques das confrarias, António Mahando pode participar nas orações mas deixou de poder pregar. Lado a lado na mesma rua, os dois locais de culto são o exemplo vivo das divisões - entre a doutrina wahhabita e a das confrarias - acentuadas nos últimos anos em Nampula, a mais muçulmana das onze províncias moçambicanas. Sobre as confrarias, António Mahando diz que confundem tradição com religião. Na sua visão, só isso explica que dancem e toquem instrumentos, quando há um falecimento, ou comemorem as datas do nascimento do profeta com cânticos.
As confrarias, que se constituíram na Ilha no fim do século XIX, ainda reúnem um número maior de crentes e têm muito mais locais de culto. Cerca de 800 mesquitas, em toda a província de Nampula, onde se juntam mais de cem mil crentes.
Mas a pouco e pouco, vêem surgir espaços de culto (pelo menos 33 em toda a província) onde jovens, acabados de regressar do Sudão, da Arábia Saudita ou do Paquistão, formados em Teologia, tentam difundir uma visão mais radical do islão, a mesma do Conselho Islâmico, que tem ganho influência, graças ao apoio de organizações internacionais e Estados islâmicos.
"CURAR A SOCIEDADE DA IMORALIDADE"
A Africa Muslim, com sede em Nacala, é uma das organizações, financiada por empresários do Kuwait, que atribui bolsas para dentro e fora de Moçambique. "Eu sou fruto disso", diz José Ahmade. "Estudei na Arábia Saudita. Medina". Primeiro aprendeu o árabe, fez a licenciatura em Teologia, por fim o mestrado, com uma bolsa da Africa Muslim, quando ainda só existia a delegação em Maputo.
Hoje, a organização está sobretudo presente nas três províncias do Norte: Nampula, Cabo Delgado, Niassa. Nos últimos dez anos, abriu nove escolas e passou de 200 a 800 alunos, entre os quais crianças da escola primária. Ao currículo escolar convencional, juntam-se as disciplinas de árabe e religião.
"O objectivo é curar a sociedade moralmente", diz. "É através da religião que os valores perdidos podem ser recuperados." Os estudantes assinam um termo de compromisso no qual prometem "pôr em prática todas as obrigações do islão e afastar-se de tudo o que a religião condena". "As raparigas que aqui estudam já não frequentam os sítios nocturnos e têm mais cuidado com a maneira de vestir, usam o véu islâmico", congratula-se José Ahmade.
Se algum dos seus estudantes quisesse juntar-se à Al-Qaeda, qual seria a posição? A Africa Muslim tem no seu regulamento não interferir em questões políticas. Mesmo assim, Ahmade arrisca uma opinião pessoal: "Isso depende da fé de cada um. A 'jihad' (guerra santa) é como um culto, uma adoração. E qualquer acto de adoração depende da fé de cada um".
BOLSAS DE ESTUDO PARA MEDINA OU CARACHI
Depois de ter frequentado uma madrassa em Maputo, o xeque Ahmade Molide formou-se em Teologia islâmica numa Universidade de Carachi, Paquistão, de onde regressou em 2000. É recém-casado. Tem uma mulher. Defende a poligamia, mas "com limite". Quatro mulheres, "para prevenir o adultério" que o islão condena. "Defendemos que as mulheres, não apenas muçulmanas, se vistam convenientemente, com um traje de respeito. Um traje de seminua atrai a corrupção." Sentado numa esteira frente a uma mesa baixa cheia de livros das organizações, Africa Muslim e a Liga Mundial Islâmica, diz que "defende a doutrina original do islão", na sua mesquita, Gamama Muhala, na cidade Nampula.
Explica a importância dos estudos no Paquistão e diz que os wahhabitas são aqueles que apregoam a doutrina correcta, pois têm cursos universitários em Teologia islâmica. "Actualmente, é mais fácil ter um jovem a explicar os ditos do profeta. Nesta cidade, podem existir mais de 10 ou 15 chefes formados no estrangeiro, que entendem bem o Corão. Há uns anos, não existiam nem três ou quatro chefes numa localidade ou num bairro." E conclui: "A sociedade tem respondido bem, mas não são todos, porque Satanás também está por detrás a fazer a sua campanha".
"SINTO MUITO A FALTA DE CANTAR NO RAMADÃO"
A mesquita Gamama Muhala onde o xeque Ahmade Molide prega desde que regressou do Paquistão foi fundada pelo falecido Ibraimo Issufo. "Naquela mesquita, quando estávamos ligados às confrarias, costumávamos cantar", lembra Sara Issufo.
Em 1990, o tio de Sara e fundador da mesquita escolheu-a para participar num grande encontro da Conferência Islâmica em Maputo, que reuniu vários países africanos. Para isso, Sara recebeu formação intensa, aprendeu a rezar sozinha. Cinco vezes por dia. Recusa a visão "fundamentalista" do xeque Ahmade Molide. "Hoje existe uma radicalização, uma tensão", diz.
Esta jovem professora de biologia usa o cabelo solto, veste calças e uma blusa larga, ligeiramente decotada. Não aceita a ideia de que a mulher deve ter um "traje de respeito", como diz o seu amigo, o xeque Ahmade Molide, com quem um dia teve uma grande discussão sobre a poligamia. Lembra, com nostalgia, tudo o que aprendeu com o falecido Ibraimo Issufo. "Ele dizia que a mulher deve usar uma roupa com a qual se sinta bem. Quando apareceram estes 'intelectuais' que estudaram lá fora, começaram as divisões. Se aparecerem mais, pode haver perigo", diz. Desde então, muito mudou. "Sinto muito a falta de cantar no Ramadão."
PÚBLICO - 28.11.2004