Linha de Borrasca por Fernando Manuel
Tenho um amigo com um carácter muito impulsivo, jovem dos seus 30 anos feitos recentemente cuja primeira reacção após ler a biografia de Uria Simango pela pena de Bernabé Lucas Ncomo foi a de intentar um processo judicial contra o Estado moçambicano.
Ou, mais precisamente, contra a Frelimo.
A leitura tinha-o feito, literalmente, “ ir aos arames “, exigindo de si a prova mais alta do seu direito ao “ exercício de cidadania“. E não queria exercê-la sozinho: iniciou um movimento de recolha de assinaturas junto de gente da sua criação que tinha sido vítima do mesmo crime, a saber : o de, durante anos, terem sido obrigados a cantar, na fila antes de entrar para a sala de aulas na primária, alto e bom som; “ Simango, reaccionário “.
“ A Frelimo manipulou-me “, bradava ele, “ fez uso abusivo da minha inocência “.
Outros, contudo, vinham sendo manipulados de antes. Lembro-me que desde quase logo a seguir à proclamação da Independência correu o país todo, de lés a lés - em cartazes, brochuras, panfletos, livros escolares – uma imagem em que aparece Eduardo Mondlane sentado numa elevação pouco pronunciada
de terreno, tendo a seu lado Samora Machel, alhures nas matas da guerrilha. A foto trazia sempre, por baixo, uma frase que era atribuída ao primeiro : “ posso morrer descansado, porque sei que a revolução continua “. Mais vírgula, menos vírgula.
Faço questão de fazer notar, aqui, o facto de dizer que a frase é atribuída a Mondlane.
Por razões óbvias de calendário e seu enquadramento na História da Frente: não é crível, de facto, que Mondlane possa, ao tempo da foto, ter visto o Samora como seu sucessor “ natural “ na liderança do movimento.
Por um lado. Por outro, não havia nada que pudesse indicar premonitoriamente a Mondlane que ele seria morto à bomba em 1969. E, mesmo que fosse esse o caso, entre o Samora e a liderança da Frente, interpunham-se ao tempo muitos e imensos embondeiros ainda vivos.
A sua morte - a dos embondeiros - veio a dar-se com o tempo e quase sempre de forma violenta e pouco ou
mal esclarecida, abrindo caminho para outras gerações.
Resulta extremamente problemático, por conseguinte, que a Frente nos queira impingir um Mondlane a
olhar com ar paternal para o Samora a dizer - ou mesmo pensar - “ posso morrer tranquilo “ ou outras ternurices do género: há um hiato cronológico e histórico impreenchível.
Mas, como método e para aquilo que os “ camaradas “ pretendiam, deve ter funcionado em pleno. Senão, como estariam eles agora a reeditar a experiência?
Na sua cruzada de despedidas, Chissano olha para Guebuza, sorridente a seu lado, e diz à plateia com ar de pai bem sucedido: “ retiro-me tranquilo, porque deixo o poder em boas mãos “.
Mais vírgula, menos vírgula.
Qual poder?
Se nos quer impor uma dinastia diga-o claramente, e já. Esse jogo de gato e rato em que nos anda a embrulhar e esfarrapar os neurónios, com a CNE como engodo, já encheu as medidas que encher devia!
Media fax – 16.11.2004