Guilherme de Melo, jornalista, durante mais de duas décadas em Moçambique, publicou em 1985 “MOÇAMBIQUE – DEZ ANOS DEPOIS”, relato da viagem que ali fizera pouco tempo antes e de que só hoje obtive um exemplar.
Guilherme de Melo foi um dos jornalistas que esteve no Chai pouco tempo depois do ataque.
Estando mais que comprovado que a história contada e encomendada pela Frelimo não é a verdadeira, porque voltou Guilherme de Melo a escrever o que adiante ides ler e o que levou o cozinheiro do então administrador a inventar a “história” que conta e é ali reproduzida?
Sabemos que ele retornou a Moçambique, especialmente para assistir às comemorações dos 20 anos do ataque ao Chai, a convite de Mário Ferro e Alves Gomes do “Notícias” de Maputo. Terá sido por isso?
Aqui vai a transcrição:
EVOCAÇÃO DO CHAI
No troço da estrada que vai de Macomia a Mueda, em pleno coração do interior moçambicano — o planalto dos Macondes — há, ainda hoje, duas pontes em betão com os tabuleiros destruídos. Uma situa-se no troço entre Macomia e Chai; a outra para lá do Chai, sobre o rio Mapwede.
Foram ambas destruídas pelos guerrilheiros, durante a luta armada para a independência, com o propósito de cortar o avanço das tropas motorizadas portuguesas.
Cumpre referir que, no decorrer da guerra, a Frelimo evitou sempre a destruição de infra-estruturas de grande envergadura — como pontes, barragens, centrais — exactamente na mira do dia em que, mais tarde ou mais cedo, tudo lhe viesse parar às mãos.
Dez anos decorridos sobre a independência, as duas pontes continuam tal como ficaram depois de dinamitadas: o Governo moçambicano deixou-as propositadamente assim, à laia de um curioso museu de guerra um pouco disperso por todo o país. Ao lado dos dois tabuleiros semi-destruídos, existem agora duas outras pontes, por onde o trânsito se processa.
Vinte anos depois do primeiro ataque a uma autoridade colonial — concretamente, o posto administrativo do Chai— é possível reconstituir-se todo o background da razão de ser dessa guerra de dez anos que, ainda hoje, muitos dos brancos que viviam na antiga colónia, e dela saíram após o 25 de Abril, se recusam a querer entender. Estou no Maputo quando se comemora aquela data e peso, palavra por palavra, os depoimentos dos que então viveram directamente os acontecimentos que muitos desses mesmos brancos —e eu próprio— de todo ignoravam, envoltos no remanso doirado que era o dia-a-dia na ex-Lourenço Marques.
O primeiro tiro
O lugar escolhido pela Frelimo para o ataque que marcou o desencadear da luta armada de libertação da ex-colónia foi, como se disse, o posto administrativo do Chai.
Tratava-se de uma pequena localidade do interior de Cabo Delgado, com pouco mais de meia dúzia de edifícios. Nomeadamente, uma secretaria, a casa do chefe do Posto, a casa do gerente da Companhia Algodoeira do Sagal, dois estabelecimentos comerciais, um pequeno hospital, a cadeia, as casernas dos soldados e as residências dos polícias brancos e dos cipaios negros.
No dia do ataque havia uma festa em casa do administrador do Posto, porque um dos seus três filhos fazia anos — recorda, vinte anos depois, Ahmad Sique Burahimo, ao tempo a servir, como cozinheiro, no Posto administrativo. E acrescenta: O administrador era muito mau para a população. Além de roubar cabritos, galinhas e outros bens que mandava que os cipaios recolhessem nas aldeias e trouxessem para o Posto, espancava brutalmente a população e tinha grande prazer em dar ele próprio palmatoadas.
A dado momento da festa, segundo o relato do então cozinheiro, chegou ao Posto o régulo da povoação de Malane — actualmente Litandakua — comunicando ao administrador que tinha avistado nesse dia pegadas estranhas» numa picada da sua zona.
Imediatamente o administrador se meteu no jipe acompanhado pelo régulo, dois polícias e um cão-polícia, seguindo, mato adentro, para o local. Era já noite avançada quando regressaram e, em casa, a festa do aniversário terminava.
Acompanhado pêlos dois polícias e pelo cão, o administrador dirigiu-se directamente para a Secretaria da Administração — continua a contar. Mas, ainda com o motor do carro a trabalhar, ouviu-se de repente uma descarga de tiros. Ele saiu do carro a correr, em direcção à residência, onde tinham ficado a mulher e os filhos. Já à entrada da casa, o administrador foi atingido com dois tiros no peito e caiu, ensopado em sangue.
Ahmad Burahimo ainda se recorda de ter visto, quando o tiroteio cessou, dois polícias, a mulher do administrador e o gerente da Sagal a carregarem o ferido para o interior da residência. Esvaindo-se em sangue, ele permaneceu no Posto, agonizante, o resto da noite e só na manhã seguinte foi transportado para a então Porto Amélia — hoje cidade de Pemba— onde veio a falecer.
Entretanto, quando eu estava a sair da cozinha pelas escadas traseiras, para me esconder no quintal, mal comecei a ouvir o tiroteio, um tiro apanhou-me na perna, perto do joelho, e caí, rebolando pelas escadas abaixo. Já no chão, rastejei uns vinte metros e escondi-me atrás da mangueira do quintal. Foi daí que avistei um polícia a ser atingido por um tiro a meio da testa e cair morto. Um outro polícia, escondido entre o muro do quintal e uma casa, também recebeu um tiro e morreu logo, quando estava a erguer a cabeça para apontar a sua arma.
Quando o breve combate terminou, os guerrilheiros abandonaram o terreno, deixando dois polícias mortos, o cão-polícia também abatido, o administrador do Posto moribundo e vários feridos, entre os cipaios e o pessoal auxiliar da Administração.
Comandava o pequeno grupo que acabava de iniciar a luta armada que dez anos depois levaria à independência, um homem de trinta e poucos anos chamado Alberto Joaquim Chipande. Ë, hoje, o ministro da Defesa Nacional da República Popular de Moçambique e dirigente da província de Cabo Delgado. General do Exército.
A repressão
Depois disto, vieram para o Posto de Chai um novo administrador e um seu adjunto — continua Ahmad Bura-himo a contar. E diz, concretamente, os nomes de um e de outro. E só por uma questão de pudor e de vergonha, como português e branco, me escuso, aqui, a referi-los.
Dos dois, o adjunto era o pior. Era extremamente cruel. Logo após a sua chegada começou a matar gente. Com o pretexto de que estava a «limpar terroristas», como dizia, enforcava pessoas e deixava-as penduradas nas mangueiras. As vezes cortava as cabeças e deixava-as espetadas em estacas, para todos verem. Num só dia, em plena Secretaria da Administração, matou com as suas mãos cinco pessoas. Ele fazia coisas horríveis. Um dia vi-o espetar um prego na cabeça de um homem. Martelava e enterrava o prego todo na cabeça, depois mandava a pessoa ir para casa. Ë claro que essa pessoa nem dava cinco passos. Caía e morria logo.
Ahmad Burahimo continuou a trabalhar ainda durante alguns anos no Posto. A verdade, porém, é que o ataque conduzido pela Frelimo lhe tinha já suscitado diversas dúvidas sobre a legitimidade do poder colonial — dúvidas essas que rapidamente se adensaram face às barbaridades cometidas pelo adjunto do novo Administrador que, de resto, o não poupava nas suas fúrias. Um dia começou a ameaçar-me que também a minha vez chegaria. «Corto-te o pescoço, olá se corto! E que lindos petiscos tu vais fazer com a tua própria cabeça!»
Com o pretexto de que pretendia visitar uns familiares distantes, pediu licença para se ausentar por algum tempo e acabou por se desligar dos quadros do pessoal da Administração, ingressando pouco depois nas fileiras da Frelimo. Passou então a ser um importante «contacto» da Organização naquela zona de Cabo Delgado, tornando-se responsável pela distribuição de cartões de membro a novos aderentes e desenvolvendo missões de recrutamento de jovens para a luta armada. Com o objectivo de camuflar tudo isto aos olhos, sempre desconfiados, não só das autoridades do Posto como dos agentes da PIDE, Ahmad Burahimo adquiriu um pequeno barco com o qual passou a pescar no lago do Chai.
A vila-museu
Vinte anos volvidos sobre tudo isto, o Governo moçambicano transformou o Chai no museu histórico da Revolução moçambicana.
Independentemente do monumento que vai ser erguido, defronte de um gigantesco mural alusivo ao arranque da luta armada, toda a povoação propriamente dita foi conservada intacta, tal como era na altura do ataque de 25 de Setembro de 1964. Inclusive o mobiliário e demais recheio das casas da Administração mantêm-se, sem qualquer alteração.
Uma das casas foi, entretanto, transformada em museu das primeiras armas — entre as quais a que Chipande utilizou naquele dia e por ele próprio ali entregue, aquando do 20.° aniversário do acontecimento que marcaria o início do fim de uma era.
Vinte anos depois, o tempo foi descendo o seu véu de esquecimento. No país novo, há dez anos independente, apagam-se os ressentimentos, diluem-se as recordações dolorosas de uma repressão temperada em sangue, de uma guerra pontuada de horrores. Não há mais, no planalto Maconde, o estremecer das explosões. E os xericos voltaram a trilar por todo o vale do Miteda, onde a Nó Górdio chamejou. Moçambicanos e portugueses podem, enfim, olhar-se como irmãos.
Penso naquele grupo que, não há muitos anos ainda» se propunha levar a tribunal os responsáveis pela descolonização. E se um dia os moçambicanos reclamassem um outro Nuremberga, para julgar os crimes do colonialismo e levassem até ele, a depor, os muitos Burahirnos que ainda existem por todo o país?
Caro Guilherme de Melo:
- Se todos os Burahimos mentirem como este, que conheci pessoalmente e assim não contava a história, não sei o que restaria para o "seu" tribunal em Nuremberga?
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Aproveito para copiar o que, em 23 de Setembro passado, escrevi no Moçambique na Web Jornal:
O Chefe do Posto à data do ataque chamava-se Felgueiras e estava com a família lá. Na hora do ataque não estava no posto pois tinha ido ao Messalo com 2 polícias e vários cipais. Só ficou no posto um polícia branco e vários cipais. Também lá moravam funcionários do posto, o Pinheiro e o Brandão, mais a família Alves. O enfermeiro chamava-se Tivane. O Cozinheiro era o Amade.
O Felgueiras pediu ao Governador para sair e foi temporariamente substituí-lo o Dias de Macomia. Talvez uma semana depois foi o Fonseca lá colocado que levou a mulher. Vindo de Portugal estava com eles o cunhado deste que foi quem, não uma semana, mas cerca de 3 semanas depois, foi morto quando passava junto ao Rio Messalo vindo do Monte Oliveiras. Vinham 3 pessoas no Jeep e ele ia no meio. As outras duas nada apanharam e ele levou um tiro entre os olhos, vindo a falecer já depois de evacuado.
Assim não foi o cunhado do Chefe do Posto da altura que foi morto, mas o cunhado do que o veio substituir.
Fernando Gil
http://www.macua.org/chai25092003.htm
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