Das esplanadas da Costa do Sol às miseráveis ruas do bairro de Chamanculo, Maputo põe a descoberto a imensa distância entre ricos e pobres, entre uma geração de jovens com um futuro promissor, e outra de miúdos solitários, que se interrogam - "De que serve protegermo-nos da morte, se não há perspectiva de vida?" No Sul "desenvolvido", uma fábrica, com dívidas, deixou de pagar aos seus trabalhadores. Um pai ficou sem dinheiro para alimentar os filhos. Ricos e pobres, apoiam a Frelimo. Os mais descontentes arriscam a indecisão. Da nossa enviada, Ana Dias Cordeiro, em Maputo
Fim de tarde de um domingo, em plena campanha eleitoral. Na Costa do Sol, o ambiente é de festa. Roberto Isaías, estrela da "música tradicional moderna", actua num palco em frente ao mar, junto ao restaurante Miramar. Mais tarde, na conversa, o músico (também vocalista dos populares Kapa Dêch) explica que pertence a uma geração, urbana e artística, que é produto da Frelimo. "Estamos num país muito jovem", diz. "Hoje temos o Miramar, temos o jazz na praia, coisas boas que não tínhamos há dez anos. Mas eu sou suspeito, pois faço parte de uma classe privilegiada", acrescenta.
Algumas oportunidades dos artistas surgem de iniciativas oficiais, por vezes, ligadas à Frelimo. Por isso, diz, é conotado com o "sistema". No balanço dos dez anos de multipartidarismo, diz que muita coisa melhorou. "Mas também há mais pobreza. Morreram muitos artistas, por falta de assistência social. Isso não faz sentido num país que é um exemplo."
Um dos músicos que acompanha Roberto Isaías é Samito Matsinhe. Com 25 anos, começa a ser conhecido pelos seus concertos de piano a solo. Frequentou a escola de música de Moçambique, prosseguiu na África do Sul, onde tocou com um dos mais conhecidos músicos da África Austral, o moçambicano Jimmy Dludlu. Agora prepara-se para emigrar para o Canadá, onde tem família. "Vou por causa das oportunidades profissionais. A arte, em dez anos, não avançou quase nada em Moçambique e não é uma prioridade do Governo. Mas há coisas muito boas, no país. Construíram-se escolas, postos de saúde, introduziram-se novos cursos universitários. Em contrapartida, os estudantes acabam o liceu e não conseguem nem emprego nem entrar na universidade", diz. "Muitos jovens de Maputo não irão votar."
Não faz prognósticos. "Não sei quem vai ganhar. Sou de Maputo, sou da cidade. Sou fruto da Frelimo. Mas estas eleições vão ter uma energia diferente. As pessoas já não vão ter medo de escolher. Nas duas primeiras eleições, estavam muito contraídas, vinham do Governo centralizado."
O receio de um partido que foi sempre oposição
O medo de um retrocesso, em caso de uma vitória da Renamo, é frequentemente evocado em Maputo. As pessoas lembram o que se passou na Guiné-Bissau: à euforia da mudança, com o fim do reinado do PAIGC, e a vitória de Kumba Ialá, seguiu-se o desastre e um recuo de vários anos no frágil processo de desenvolvimento do país.
Não confiam na Renamo por não ter experiência governativa. São alheios às experiências no Centro e Norte do país, onde desde as autárquicas de 2003, quatro municípios estão a ser geridos pelo principal partido da oposição, três dos quais (Beira, Nacala e Angoche) com resultados considerados positivos.
Nos dias e semanas que antecedem as eleições, há pessoas a tentar resolver os processos pendentes nas repartições públicas. Têm receio que, com a possível chegada da Renamo ao poder, o sistema entre em colapso, ou a resolução de problemas se arraste indefinidamente. Empresários e grandes grupos estrangeiros apressaram-se a fechar contratos com o Estado antes das eleições.
Uma importante parte do apoio à Frelimo nas cidades vem dos mais de 120 mil funcionários públicos. "Não temos medo de sermos afastados se houver mudança", diz Francisco João Mbeve, perito da Acção Social. "Os funcionários públicos entraram com esta bandeira. O apoio à Frelimo não é um apoio forçado, é um apoio cultivado, que vem com a História."
"Desta vez, o voto requer muita reflexão"
Ernesto Januário foi recrutado em 1983 para o serviço militar obrigatório. Fez a guerra até 1992, nas tropas governamentais. Os mais de dez anos de serviço, até 1994, quando foi desmobilizado, deram-lhe direito a uma pensão militar. Recebe 700 mil meticais (27 euros) por mês. "Quando eu saí da vida militar não havia outra profissão." Hoje é fotógrafo, por conta própria. Tem uma banca à porta do Museu de História Natural de Maputo, onde vende retratos dos visitantes.
"Nestes últimos dez anos, a vida melhorou para algumas pessoas aqui em Maputo. Mas lá fora, em todas as províncias, a vida é difícil. Mesmo aqui perto na província de Gaza, não há água - o líquido mais precioso!" exclama. Em 1994 e 1999, Ernesto Januário votou Frelimo. "Estive durante dez anos com eles. Agora fazem as mesmas promessas que sempre fizeram, mas não cumpriram. Se fosse a minha opção votava para dar espaço a outras pessoas", diz. Não é a sua opção? "Vou ver no próprio dia. Desta vez, o voto requer muita reflexão."
"As pessoas têm medo de falar"
"As pessoas sentem que é arriscado falar, têm medo de perder o emprego", diz Tina Mucavele. Por isso, recusam dizer que não votam Frelimo. "Existe um controlo social sobre as pessoas". Ao receio, junta-se a "apatia" de uma população cansada do Governo, mas que não encontra na oposição uma alternativa convincente.
Esta assistente social de 26 anos, que trabalha para a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (fundada por Graça Machel) questiona: Até que ponto se pode dizer que nestes últimos dez anos, foi o partido no poder que trouxe a paz? "Esse tem sido o argumento da Frelimo para ganhar as eleições, mas a paz aconteceu graças a todos os intervenientes. Fazem-nos ter medo dos novos partidos. Mas as coisas não estão assim tão bem, há muito dinheiro para projectos que é desviado e ninguém diz nada."
E conclui, de novo com uma interrogação: "Até que ponto o desenvolvimento está ligado às pessoas?"
Num trabalho de sensibilização para a prevenção da sida, nos bairros pobres da capital, Tina chegou à conclusão de que a maior parte dos jovens moçambicanos não pensam em ser engenheiros, não pensam em ser médicos.. E chegam mesmo a dizer: "De que serve protegermo-nos da sida, se não temos perspectiva de vida?"
Quando em Maputo os seus amigos lhe dizem que tudo vai bem, Tina costuma responder: "Vai bem para nós, porque somos uma elite, somos jovens da cidade. Fora daqui, é outro mundo."
"Confio na Frelimo, por causa da experiência"
Das mais de 22 mil pessoas do sobrepovoado bairro Chamanculo C, muitas vieram de Inhambane, durante a guerra. Na parte mais pobre do bairro, os caminhos de lama conduzem a barracas ou casas minúsculas, onde o espaço é suficientemente exíguo para só sustentar uma cama. Não há mais nada, a não ser um recipiente com água, um armário vazio, uma esteira para quem dorme no chão, um pneu que serve de banco.
Uma panela, uma sandália, uma peça de roupa estão espalhadas no chão de terra. Cinco crianças comem arroz com hortaliça da mesma panela. Um candeeiro a petróleo, uma vela, à espera da noite, numa casa sem luz, sem água, sem nada. Famílias inteiras vivem como não se imagina que seja possível viver.
Na porta a lado, duas crianças gatinham. Famintas, bebem um líquido vermelho que o pai preparou. Um xarope? Um sumo? O filho mais velho tem um ar angustiado. O corpo magro definha.
A mãe está fora, tem uma banca de venda em Xipamanine. O pai trabalha há 20 anos para uma empresa de sumos. Essa empresa está com dívidas e, desde Janeiro, não paga aos trabalhadores. É como se estivesse desempregado, sem direito a nada. O seu desespero não se explica. Xavier Valiço não diz uma palavra.
Fernando Feliz, chefe de quarteirão, fala por ele. "O problema é que as pessoas não têm trabalho. E as que têm não recebem salário", diz. "É assim desde que o Estado vendeu as empresas para a privatização." A serração fechou, a fábrica de vestuário fechou, a fábrica de borracha fechou. "Expulsaram todos sem indemnização." Os mais novos são vendedores de rua. "Na rua da sobrevivência."
"As coisas não melhoraram nada, pioraram", conclui. Mesmo assim, Fernando Feliz confia na Frelimo. "Por causa da experiência."
PÚBLICO - 30.11.2004
Recent Comments