por Roberto J. Tibana
Trinta anos de governação da FRELIMO em Moçambique deram para vermos tudo o que os políticos da geração que passa em África nos podem dar, desde catalisar os povos e guiá-los numa epopeia libertadora de inquestionável e inapagável valor histórico, passando por desastres económicos, políticos e militares resultantes de um misto de inexperiência, ingenuidade, clientelismo em relação a potências mundiais em disputas geo-estratégicas e ideológicas, até chegarmos ao realismo político a que a evidência dos factos necessariamente levou e que os convenceu da necessidade de relaxar o seu controlo autocrático da sociedade, para ainda desaguarmos na ilusão dos sistemas económicos e políticos corruptos que se desenvolveram na sequência das liberalizações dos anos 1980s/90s.
Quando aqueles da minha geração que Eleições 2004: Quando a fasquia foi levantada demasiado alto não haviam participado na luta clandestina e na luta armada de libertação nacional recebemos a FRELIMO, estávamos imbuídos do mesmo espírito nacionalista que impregnava toda a sociedade e os guerrilheiros, mesmo naquela nossa juventude.
A história contada quase mítica da guerrilha e dos feitos e qualidades dos líderes e do movimento só veio reforçar esse entusiasmo.
Mesmo quando na convivência e participação activa nas actividades de reconstrução pós-colonial como simpatizantes do movimento nacionalista e como cidadãos nos íamos dando conta de anomalias e erros, da intolerância e manipulação, da exclusão e extremismo, o dogma da verdade e da pureza do movimento e da liderança que nos foi inculcado eram suficientemente fortes para criar aquela zona de tolerância que nos levava sempre a dar o benefício da dúvida aos homens que fizeram o Moçambique independente.
Mas o totalitarismo do regime, a tortura, as prisões arbitrárias e sem julgamento, seguidas de deportações, a recusa ao diálogo com os irmãos que mais cedo do que muitos de nós se deram conta dos males do regime e o questionaram, fizeram desmoronar o castelo de cartas, e iniciaram o ciclo vicioso do declínio económico e social da sociedade moçambicana.
A génese da RENAMO, em particular as suas ligações com os regimes militares da Rodésia do Sul e da África do Sul é bem conhecida e não é negada mesmo pelos dirigentes deste movimento de insurreição agora tornado partido político. Os métodos brutais de recrutamento e incorporação na
guerra são bem conhecidos. A destruição das infraestruturas sociais e económicas, as vítimas inocentes nas estradas e aldeias, estão registados na memória das famílias e da sociedade.
Mas só quem não conhece a natureza das lutas de guerrilha e da contra-guerrilha é que teria a ingenuidade de acreditar na versão oficial da FRELIMO em como todas as barbaridades da chamada "guerra dos dezasseis anos" foram o produto exclusivo das operações da RENAMO. Se as duas partes tivessem aceite abrir um processo de reconciliação nacional que incluísse a denúncia e confissão dos actos desumanos e criminosos durante essa guerra, tanto os cometidos a mando dos comandos superiores ou por iniciativa de comandos locais ou de grupos de guerrilheiros e soldados de ambas as partes, teria sido difícil saber-se de que lado a balança pende, pois para além dos
crimes de guerra existem também os crimes de abuso, prisão, tortura e matança pública a coberto da defesa da soberania do Estado, cometidos por um regime totalitário de partido único, em nome da soberania do povo e nos interesses do povo, mas que se tornaram um verdadeiro desastre que levou a sociedade décadas atrás no caminho do progresso humano.
Acreditando na paz trazida pelos acordos de Roma de 1992 entre as duas partes detentoras de armas, e com o desejo de consolidar essa paz, o povo saiu em massa para as eleições de 1994 e com dificuldades de escolher entre os dois, quase que lhes deu o mesmo crédito por se terem entendido em poupá-lo do martírio da guerra. Mas segundo os impulsos inerentes à cultura de exclusão típica dos líderes africanos, e aproveitando o sistema necessariamente imperfeito da democracia do vencedor que fica com tudo, só um deles podia governar e a FRELIMO ficou com o poder. E com isso, convenceu-se da sua legitimidade inquestionável. Em 1999 o povo foi mais uma
vez chamado a dar o seu veredicto. Quis experimentar a mudança, mas desta vez o desrespeito pela sua soberania foi ao extremo. A fraude de 1999 é hoje um segredo público. Mesmo os observadores internacionais que ingenuamente ou não a permitiram e fizeram o povo incauto engolí-la em seco, têm hoje o peso na consciência por assim terem procedido. Mas isso é tarde demais. Perdemos
vidas em Montepuez e em várias partes do país, perdemos Carlos Cardoso, o país quase parou no seu progresso, e uma elite predatária e um grupo de criminosos capturou o estado e mantém o povo como refém dos seus ditames.
Nesse tempo todo, a FRELIMO foi ajudada pela ineficácia política do seu adversário directo, a RENAMO, que só muito tardiamente se apercebeu da erosão do seu poder de facto antes baseado no controlo militar de vastas porções do território e que terminou em 1992-94 com os acordos de Roma e o desfecho das eleições de 1994. Em lugar de rapidamente sair das suas trincheiras e exclusivismo típico de todas as guerrilhas que se vangloriam libertadoras das massas supostamente passivas e sem poder nenhum, e em lugar de avançar, dialogar, desenvolver ideias e projectos de desenvolvimento e governação alternativos, e em lugar de se organizar, ligar continuamente e trabalhar para curar as feridas e a sua relação com o povo que sofreu com a guerra, em lugar de rapidamente buscar alianças com elementos da classe média à procura de uma alternativa credível ao incumbente desgastado pela história de governação autocrática, erros de políticas, e corrupção, a
RENAMO acreditou na irreversibilidade dos ganhos de 1994 e 1999 e apostou na força da inércia da legitimidade da sua luta pela instauração de um regime democrático em Moçambique. Porém, tendo conseguido evitar a derrocada total do regime através das conversações de Roma, tendo saído de lá com ainda um certo controlo do poder político institucional derivado do reconhecimento internacional da soberania do seu governo, e tendo conseguido manter esse poder com a sua vitória marginal em 1994 e o feito acrobático de 1999, nos últimos 10 anos a FERELIMO usou muito inteligentemente esse poder político para ir impondo as instituições de uma democracia largamente parcial e fictícia, mas que tinham o efeito de progressivamente ir estabelecendo as condições para uma hegemonia total e de longo prazo a coberto de processos aparentemente livres e justos sufragados eleições periódicas. Ela criou uma classe média baseada na administração pública e uma elite de negócios
profundamente ligada ao Partido, e que lhe serve de canal de recursos financeiros e materiais gerados tanto no sector privado, como daqueles tornados disponíveis ao governo através da tributação e das doações internacionais para os programas de desenvolvimento do país.
Há sim uma fraude em curso em Moçambique. Mas esta é uma fraude que não começa nem se desenrola somente no teatro das eleições nem nos eventos da votação ou da contagem dos votos. O que nós assistimos nos últimos dias não é nada mais do que mais um episódio numa fraude.
Trata-se de uma fraude contra o povo moçambicano que se desenvolve desde 1975, quando o poder tomado pela força das armas da guerrilha contra a administração colonial não foi devolvido ao povo pelo sufrágio universal, mas sim mantido nas mãos de uma elite exclusivista que o usou para acumular mais poder e riqueza com os quais pretende manter e perpetuar a sua hegemonia sobre o resto de todos nós. Numa das suas outras expressões cultivadas mais recentemente na história do pais, essa fraude toma a forma da apropriação ilícita dos recursos públicos para benefício pessoal por parte dessa elite política e seus familiares e amigos, e inclui o uso desses recursos para fortificar a sua organização e poder político. As manobras todas, desde a manipulação do estabelecimento das instituições e do processo de recenseamento eleitoral, até à desorganização deliberada da logística das eleições da semana passada através da Comissão Nacional de Eleições e do Secretariado Técnico para a Administração Eleitoral, são somente uma parte de uma grande operação para a manutenção do poder, a todo o custo, por um grupo que cada vez mais o procura só com o fito de fazer avançar os seus interesses privados e individuais.
É sim verdade que o candidato presidencial da FRELIMO cavalgou o país de alto a baixo nos últimos anos reavivando as bases do seu partido. Não é o mérito pessoal dele que está ou não em causa. Fala-se muito da má gestão da liderança da RENAMO e da ineficácia deste partido em termos da organização das suas bases para ganhar o poder e governar eficazmente o país. Mas nisto tudo ignora-se o volume de recursos públicos que têm desaparecido dos cofres do Estado à guarda do governo da FRELIMO, e que são centenas de vezes superiores aos míseros valores de que a liderança da RENAMO é acusada de mal gerir. E pretende-se que os propalados quatro biliões de Meticais que a RENAMO-UE recebe do Orçamento do Estado são em pé de igualdade aos valores
desviados do Estado através dos mais diversos esquemas de corrupção, e que depois de uma grande volta vão pelo menos em parte dar entrada aos cofres do Partido no poder.
Estamos a falar de acções de um grupo que recusa direitos a todos os que dele diferem e não fazem parte, incluindo o direito de eleger e ser eleito, de participar na governação dos destinos do país. É um grupo extremamente arrogante, muito convencido da justeza das suas ideias, mas sobretudo que
acredita profundamente na legitimidade inquestionável da sua hegemonia. É assim que a FRELIMO se arroga o direito de dizer à sociedade moçambicana quando é que ela estará madura para a mudança, e para que tipo de mudança. A mudança para a FRELIMO só será aceitável quando ela for para colocar no poder aqueles que eles próprios aprovam como os mais indicados para governar
este país, o que representa uma grande contradição nos termos de entendimento do que é uma democracia. Também têm um medo abismal de ver os outros no poder, porque a sua noção e prática de poder está cheia de horrores que pensam que os outros irão replicar.
Na realidade é o medo deles próprios que os faz desesperarem no poder. É um grupo de pessoas tão mesquinhas e ignorantes da dinâmica do avanço da sociedade e da civilização no século vinte que chega ao ponto de supor que sem ele a sociedade moçambicana não teria avançado qualquer milímetro na direcção do progresso.
Para essas pessoas,devemos estar agradecidos por termos uma escola e um centro de saúde, qualquer que eles sejam e a qualidade dos serviços que nos prestam, mesmo que pudéssemos ter mais e melhores escolas se eles não estivessem a permitir o roubo do dinheiro destinado à educação e saúde, tanto dos contribuintes nacionais como da comunidade internacional a que
eles fazem os peditórios em nome do povo de Moçambique.
Mas é um grupo que não é homogéneo.
E por isso vale a pena apelar aos mais conscientes e honestos dentro da FRELIMO para que travem o deslize do comboio para o desastre. E queremos chamar à atenção aos que se deixam levar pela onda da ambição de acesso ao poder pela via da bajulação das lideranças, visto o poder como caminho para o enriquecimento pessoal e rápido como tem sido o caso generalizado no nosso
país, para que se abstenham de apoiar as manobras visando manipular os resultados das eleições acabadas de realizar, que já de si vêm muito tendenciosamente viciadas pela maneira como foram preparadas. Os jovens que dentro da FRELIMO querem alguma vez aceder ao poder, um direito e desejo legítimo, devem aceitar trabalhar para ele e para com ele fazer o bem à nação, em lugar de embarcar nos esquemas dos mais velhos para a defesa de causas de que eles pouco ou nenhum conhecimento têm. Moçambique é de todos. E os excluídos de hoje não irão desistir de lutar pelos seus direitos.
E esses são a maioria, são os mais pobres, e têm muito pouco a perder numa sociedade tão empobrecida como a nossa.
Em termos práticos, é preciso começar por levantar o embargo à imprensa no acesso e divulgação dos verdadeiros resultados que vêm das contagens parciais pelos órgãos eleitorais nas províncias.
É necessário que a mesma proeminência aos resultados mais duvidosos que foram propalados pela Rádio Moçambique e por uma certa imprensa internacional irresponsável, se continue a dar a conhecer aos cidadãos o modo como está a decorrer a contagem dos votos. É necessário deixar que os resultados reais sejam eles a falar ao lado de uma imagem de vitória esmagadora que com esses resultados se pretendeu condicionar a opinião pública nacional e internacional para a manipulação dos resultados destas eleições. A fasquia foi desta vez levantada muito alto sim. Mas quem o fez é
quem tem a responsabilidade de a saltar, ou trazê-la mais abaixo.
MEDIA FAX - 10.12.2004