"Uma fome de proporções bíblicas": era assim que o repórter Michael Buerk descrevia há duas décadas, perante as câmaras da BBC, a tragédia então vivida na Etiópia. Uma vaga enorme de refugiados de guerra juntava-se então em Korem, descrito como "o lugar mais próximo do inferno na Terra". As imagens, fortíssimas, a recordar os dramas do Biafra (fruto de uma tentativa de secessão na Nigéria) ou do Bangladesh, anos antes, abalaram as consciências mundiais e deram origem a movimentos de solidariedade, dos quais o mais mediático foi o planetário "Live Aid", gigantesca resposta musical ao SOS que partia dessa legião de deserdados africanos a morrerem em directo pelas televisões.
Este ano, a 13 de Julho, cumprem-se exactamente vinte anos sobre tais concertos, que já tiveram direito a edição recente em DVD com a chancela "Still Saving Lives". Além disso, a velha "Do they know it's Christmas?" foi de novo gravada com o mesmo fim: continuar a angariar dinheiro para África, onde muitos continuam sem "saber o que é Natal" (parafraseando a letra e o sentido da canção) e, pior do que isso, continuam a morrer de fome, ainda e sempre sob a pressão de infames e intermináveis guerras.
Não por acaso, o Fórum Económico Mundial e Davos, que ontem terminou na Suíça, dedicou também grande parte das suas atenções a África, que Tony Blair ali descreveu como "uma cicatriz na consciência do mundo". Blair disse mais: "Se o que acontece em África hoje estivesse a acontecer em qualquer outro continente, haveria um escândalo tal que os governos se mobilizariam rapidamente." Bill Gates também lá estava e ofereceu dinheiro, muito (550 milhões de euros), para programas de vacinação e Bono, líder do grupo U2, que em 1985 participou nos megaconcertos do "Live Aid", disse que o combate à sida ou à malária em África não é uma causa mas sim "uma emergência".
Parece, assim, que as consciências voltam a olhar com alguma seriedade o continente mártir. Mártir não somente por casa da seca ou das muitas doenças que ali se propagam, mas por ser vítima continuada dos piores e mais primários instintos humanos. À custa deles vivem governos corruptos, encostados a silenciosos e oportunos aliados externos, que reinam por sobre a miséria dos respectivos povos, deixando a sorte destes para um qualquer fundo humanitários das Nações Unidas. Blair fala em duplicar as ajudas (de 40 para 80 mil milhões de euros anuais) e ninguém duvida da absoluta necessidade de tal medida; mas isso servirá de pouco se não houver, como também ele próprio diz, os necessários "mecanismos eficazes" de controlo. Não para que África continue na sua dependente submissão, sujeita a contínuas esmolas por fatalidade ou inépcia, mas para que se levante, aos poucos, como continente próspero que há muito merece ser. Talvez este tipo de ajuda desagrade a corruptos e "bondosos", mas é o único que faz sentido.
NUNO PACHECO - PÚBLICO - 31.01.2005