Espinhos da Micaia
Por Fernando Lima
Na década de 80, um dos proeminentes assessores de Chester Crocker escalou
Maputo com uma pergunta intrigante.
Frank Cabelli, era o nome do funcionário do departamento de Estado, queria saber se Samora Machel fosse assassinado quem o substituiria ?
Naqueles "tempos difíceis", os ministérios, mesmo o MNE, só davam respostas
tipo "chapa 4", o que era terrivelmente frustrante para as diplomacias baseadas em Maputo, sobretudo as Ocidentais, habituadas a outras aberturas.
A agência de informação, navegando muitas vezes em águas próprias e sem colete de salvação, fazia o que podia, para suprir as mazelas do sistema.
Por isso o finado director tinha na ficha do Snasp, "dá entrevistas à BBC", "fala muito para a Äfrica do Sul".
De qualquer forma, a pergunta de Cabelli não mereceu grandes conjecturas:
Chissano é o sucessor natural de Samora.
Recapitulando os momentos dramáticos de Outubro de 1986, a história diz que
assim foi, não obstante outras versões mais recentes pretendam pôr em causa a
forma pacífica como foi feita a escolha.
O consulado de Joaquim Chissano aproxima-se agora do fim.
Em 18 anos, acabou-se a guerra em 1992, antes tinha chegado a economia de
mercado e também uma nova Constituição com amplos direitos, liberdades e
garantias individuais. Veio também o multipartidarismo.
Mas foi-se igualmente parte da nossa auto-estima como moçambicanos orgulhosos
e a corrupção, a par do HIV-SIDA e da malária, tornou-se endemia crónica no país.
É redutor rematar 18 anos de governação em dois parágrafos, mas líderes há a
quem a história vota pura e simplesmente à poeira do esquecimento.
Chissano, e muitos esperam ainda muito dele, corre o risco de repetir o fenómeno Gorbatchov. O líder russo tem uma enorme auréola de prestígio internacional, no exterior do que foi a URSS, só proporcional ao número de detractores com que conta dentro do seu próprio país.
O prestígio internacional de Chissano é inquestionável, o seu perfil de hábil
diplomata é a sua imagem de marca. Internamente, são demasiados "ses"
e "mas", embora se reconheça quão penosa foi a sua caminhada, a começar pela
herança de Samora. Houve mesmo que recorrer aos velhos expedientes de caça às
bruxas com inventonas que levaram ao banco dos réus nacionalistas como
Sebastião Mabote e José Moiane.
Depois foi o abraço acrítico a Bretton Woods. Num país em que os marxistas
davam cartas aos ideólogos de terceira linha despachados da URSS, RDA e Cuba
para Moçambique, os júniores da escola de Chicago acantonados no "ajustamento
estrutural" passaram a fazer lei em Moçambique. Nalguns momentos mais penosos, o Unicef e a embaixada sueca desembolsaram uns tantos milhares de dólares para tentar "à esquerda" providenciar alguns consultores que pudessem pelo menos introduzir nuances mais humanistas ao capitalismo sem rosto importado de Washington. Ainda hoje, olhando as páginas especializadas dos jornais e os relatórios mais sigilosos que circulam pelos gabinetes oficiais, estão para aparecer os moçambicanos que dão a cara por opções teóricas na linha da economia de mercado.
Aliás, um sinais negativos da administração que agora nos deixa, foi a progressão larvar do lambe-botismo, esse circuito rasteiro e servilista de funcionários sem espinha dorsal, preocupados em agradar aparentemente o chefe para se servirem a si próprios.
Chissano entrou incontestável, mas está a sentir algumas dificuldades em nos deixar da cadeira de Estado. Assim foi a renúncia de mandato que afinal era só balão de ensaio e foi o dramático Comité Central de 2002 com a escolha do sucessor. É agora a pressa de afirmar que foi tudo ou quase tudo feito, como se Guebuza venha apenas para implementar o que já foi obrado ou decidido.
Estamos em África, mesmo que se diga que o continente esteja em transição.
Por dias difíceis têm passado muitos líderes que deixam de ser poder.
A propriedade e os negócios de alguns familiares do nosso presidente podem
ser um mau presságio.
Mas, para já, é importante que Chissano saia pela porta grande.
Muitos moçambicanos assim o querem.
Assim o esperam.
SAVANA Maputo 14.01.05