por Jerónimo Salzone
A forma desassombrada como o bispo de Quelimane se referiu às manigâncias de
um regime eternamente em conflito com os cidadãos deste país, viria a ser
contemplada com um editorial ocupando uma página inteira do semanário
Domingo. À primeira vista, o editorial inserido na edição do dia 12 do mês
transacto, poderá tratar-se de mais um diatribe to clérigo frustrado que
pontifica como assessor do periódico, e que, inspirado por aquilo que ele
designa de "marxismo telúrico", que idolatrou durante os negros anos da
ditadura, volta e meia decide descarregar sobre a Igreja sempre que esta se
pronuncia sobre temas nacionais, e que ele pejorativamente designa de
"bocas".
Mas dado que o referido semanário se encontra hoje sob a alçada da linha
guebuziana - a descontinuidade duma outra linha com poderes editorais
claramente definidos e que fizera do escândalo Cervejas de Moçambique seu
cavalo de batalha, viria o ocorrer de forma abrupta logo a seguir à eleição
dum novo secretário-geral do Partido Frelimo - é justo questionar se não
estarão os moçambicanos à beira de uma nova campanha de combate à religião no seu todo.
É que a política de perseguição religiosa movida pelo regime da Frelimo logo
a seguir à independência esteve sempre intimamente ligada a Armando Guebuza.
Foi ele que, na sua qualidade de comissário político nacional, divulgou uma
circular a 14 de Outubro de 1975, em que definia as confissões religiosas
como "estandartes do imperialismo". Da leitura atenta dessa circular se pode
compreender as razões de tudo quando viria a acontecer à escala nacional, em
que o regime não discriminava entre cristãos, muçulmanos e outros crentes.
Assim, profanaram-se templos, encerrarram-se lugares de culto e
confiscaram-se bens pertencentes às diversas confissões religiosas. Tudo
isto acompanhado de prisões sumárias tanto de crentes como de dirigentes
religiosos, para além da sua deportação.
Cego pelo rancor que normalmente salpica a mesma página em que se insere o
editorial, o Domingo pôs em causa a palavra do bispo de Quelimane quanto à
deportação de padres e crentes, ignorando que, já anteriormente, os
responsáveis pelo Departamento do Trabalho Ideológico do partido detentor do
poder publicamente admitira que haviam sido expulsos do país "alguns padres
católicos". Num documento amplamente divulgado pela imprensa moçambicana em
1979, o DTI confirmava "alguns" casos, como por exemplo "o padre Geraldo de
nacionalidade holandesa detido emn Cabo Delgado; o padre Eugénio detido no
Niassa; o padre Domenico de nacionalidade italiana, detido em Quelimane; os
padres Manuel Joaquim Pereira, Domingos Isac e Cirilo Mateus detidos em
Tete; os dois padres e uma religiosa detidos em Manica," etc. (vd
Semanário Tempo N° 452)
Mas não foram somente religiosos católicos a sofrer as agruras de um regime
desumando e cruel. A Igreja Nazarena e toda uma série de denominações
protestantes pagaram caro a sua dedicação aos valores cristãos. De acordo
com o jornal Washington Post de 22 de Abril de 1976, os reverendos Armand
Doll e Hugh Friberg da Igreja Nazarena haviam sido detidos pela segurança
moçambicana a 28 de Agosto do ano transacto e permaneciam ainda sob custódia
das autoridades moçambicanas sem qualquer processo judicial em curso. O
Reverendo Don Milam da Igreja Assembleia de Deus encontrava-se igualmente
detido desde Julho de 1975.
Agindo com requintes de malvadez, o regime da Frelimo decarrregou sobre as
Testemunhas de Jeová de forma implacável, pondo em curso uma onda de
refugiados em direcção aos países vizinhos. Num artigo intitulado "Repressão
Brutal da Liberdade do Culto em Moçambique", a revista Awake!, com a data de
8 de Janeiro de 1976, reportava a detenção arbitrária de cerca de 7,000
crentes daquela confissão religiosa, no âmbito de uma campanha levada a cabo
porta-a-porta, que não distinguia homens, mulheres e crianças. Em muitos dos
casos, dizia a Awake!, as detenções eram acompanhadas de agressões físicas.
Alguns dos membros das Testemunhas de Jeová viriam a ser deportados para o
campo de re-educação de Naisseko, na província do Niassa (tal como os restantes,
administrado pelo ministério tutelado por Armando Guebuza) e aí sujeitos
às torturas standard que consistia em amarrar os membros superiores das
vítimas com recurso a uma corda embebida em sal.
São estes alguns dos muitos exemplos que o editorialista do Domingo tenta
negar de forma arrogantemente escandalosa. Recorrendo à argumentação balofa
que o regime da Frelimo usou no decurso da campanha de perseguição religiosa
a seguir à proclamação da independência nacional, o semanário guebuziano
evoca Joana D'Arc, Galileu e a Inquisição como se os crentes moçambicanos
tivessem a sua quota-parte de responsabilidade pelo sucedido séculos atrás,
ou se a fé Cristã fosse culpada dos abusos dos homens.
Como sempre, ao editorialista não poderia faltar o cinismo canalha,
recordando o papel de Dom Manuel Vieira Pinto ou a figura de João Paulo II como uma espécie de salvo-conduto para despejar rancores e recalcamentos antigos sobre outros dirigentes religiosos escolhidos a dedo. Foi assim sempre que a Igreja se manifestou contra os horrores da re-educação, dos fuzilamentos sumários mesmo antes da introdução da escabrosa lei da pena de morte (como foi o caso dos dois cidadãos executados sem dó nem piedade no estádio de futebol de Quelimane), das torturas e das sevícias, e sempre que apelava à paz e à reconciliação numa altura em que muitos dos que hoje exaltam o papel desempenhado em Roma estavam apostados numa solução militar da guerra civil.
Rezamos a Deus para que o editorial publicado no semanário Domingo de 12 de
Dezembro de 2004 não seja o prelúdio de uma nova onda de perseguições contra
todo um povo apostado em defender a sua fé, e nem tão pouco reflicta o
pensamento de todo um governo. Os anos negros da repressão religiosa não têm
cabimento numa sociedade civilizada que todos nós - cristãos, muçulmanos e não só - pretendemos edificar neste Moçambique que é pertença de crentes e não crentes, em suma de moçambicanas e moçambicanos independentemente da ideologia política que professam, da região de que são originários, ou do grupo étnico a que pertencem, como reza a Constituição da República.
Que não se dê aso a novos conflitos pois o que terminou em 1992 custou
bastante a estancar. Os rancorosos e os frustrados pertencem ao passado -
esse é o lugar que a História lhes reservou.
SEMANÁRIO ZAMBEZE - 30.12.2004