ESTUDOS
As pedras e o arco do conhecimento literário
Livro destaca a importância das fontes primárias como matéria de história
Adelto Gonçalves de São Paulo
Já não estamos no tempo em que a apreciação historiográfica e crítica dependia de dados biográficos em termos naturalistas e deterministas, porque o texto passou a ser valorizado por ele mesmo, desde o new criticism. Contudo, caiu-se, em muitos casos, no erro oposto de se ignorar tanto o contexto histórico-cultural como o gosto dos leitores que, na sua maioria esmagadora, querem ler o texto literário também como expressão do projeto humano.
As linhas acima foram escritas pelo professor Fernando Cristóvão, catedrático de Literatura da Universidade de Lisboa, para o prefácio de Bocage – O Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), biografia do poeta Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), mas se ajustam como uma luva também ao livro As pedras e o arco: fontes primárias, teoria e história da literatura, das professoras Regina Zilberman, Maria Eunice Moreira, Maria da Glória Bordini e Maria Luíza Ritzel Remédios, todas ligadas à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), que acaba de sair à luz pela Editora UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Na obra, as autoras observam que fontes primárias constituem, em princípio, matéria da história, que constrói uma narrativa a partir dos documentos que certificam o passado. Mas, como lembram, a Teoria da Literatura tende a abrir mão desse material, ao privilegiar o produto final, a obra publicada, em detrimento de suas origens e processo de criação.
Não são poucos os acadêmicos que se inclinam por entender que o papel da biografia nos estudos contemporâneos das Letras, ou da História, ocupa um lugar secundário em vista do interesse de compreensão dos processos mais gerais de produção de sentido do que os estritamente dependentes do voluntarismo pessoal, partindo do pressuposto que a própria questão biográfica estaria em baixa nos estudos literários contemporâneos.
Quando se trata de pesquisar a produção de um poeta dos séculos XVII, XVIII ou XIX, a situação ainda piora porque, como se sabe, a produção letrada desse período guarda referências óbvias a padrões retóricos tradicionais, que, de modo algum, podem ser interpretados em chave biográfica. Para esse tipo de teórico, qualquer biografia, que, obviamente, trata de vida e da obra de um autor mais antigo, segue uma linha positivista. Supor que a biografia explique diretamente certas escolhas de composição, levando em conta que, no século XVIII, por exemplo, a produção letrada guarda referências óbvias a padrões retóricos tradicionais – vale dizer, prescritivos e supra-pessoais –, já não tem mais sentido para esses teóricos.
É claro que, hoje, o historiador literário não pode levar mais em conta versos como fontes documentais, como faziam os críticos românticos do século XIX. Mas nada o impede de citar versos, especialmente se estão ligados diretamente àquelas querelas comuns nos séculos XVIII e XIX, como a que levou Bocage produziu a produzir “Pena de Talião” em resposta a José Agostinho de Macedo.
Se fôssemos levar em consideração objeções excessivamente teóricas, não teríamos escrito as biografias de Bocage e muito menos a de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810). E, provavelmente, continuaríamos a tomar como "verdades definitivas" observações formuladas há mais de 60 anos pelo professor M. Rodrigues Lapa. Nada contra o professor, um dos mais brilhantes filólogos e pesquisadores da História da Literatura Portuguesa. Até porque à época em que ele pesquisou os arquivos não estavam tão organizados como agora.
Mas fatos são fatos. Uma das observações feitas por Lapa, sem nenhuma comprovação documental, é que o poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), condenado por sua participação na conjuração mineira a degredo na ilha de Moçambique, no exílio casou com "a herdeira da casa mais opulenta em negócio de escravatura" (Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga, prefácio de M. Rodrigues Lapa, p. XXXVI, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1942).
Com base nessa informação – a única disponível à época --, o historiador Luís Carlos Villalta, no estudo "O diabo na livraria dos inconfidentes" que faz parte do livro Tempo e História (São Paulo, Companhia das Letras, 1994), concluiu que o poeta "acabou por curvar-se ao caminho ditado pelo seu oportunismo" (pág. 385), ao casar "sem amor e com uma mulher mais rica" (pág. 386).
Valendo-se das informações de Lapa, Villalta ainda escreveu que o degredado Gonzaga "era um oportunista, ambicionava dinheiro e poder, e, até mesmo quanto à Carne, sua fidelidade à moral hegemônica esteve condicionada aos benefícios que poderia trazer-lhe" (pag. 386).
Ocorre, porém, que, em nossas pesquisas no Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa, encontramos documentação que prova que o sogro de Gonzaga, Alexandre Roberto Mascarenhas, nunca esteve entre os grandes traficantes negreiros. Era proprietário e pessoa de algumas posses, mas sempre esteve longe de ser considerado um potentado. Foi, isso sim, funcionário régio, ou seja, escrivão da provedoria-mor de defuntos e ausentes, repartição da qual Gonzaga passou a promotor e, portanto, seu superior hierárquico.
Nas várias relações de escravaturas, o nome de Mascarenhas (e, depois de sua morte, o de sua mulher Ana), quando aparece, surge como proprietário de um número reduzido de escravos, o que significa que os possuía apenas para o trabalho doméstico ou na lavoura em pequena propriedade no continente fronteiro à ilha. Já os grandes traficantes negreiros são facilmente identificados porque aparecem como proprietários de centenas de escravos (em média 300) – a imensa maioria destinada à exportação. E constam da documentação da alfândega.
Por não ter encontrado os documentos que acabamos por localizar em nossas pesquisas, Lapa observou que Gonzaga, "provavelmente, consagrava as horas vagas ao rendoso comércio negreiro" (op. cit., pag.XXXVI), insinuando ainda que o poeta ajudara o sogro a arredondar a fortuna. Pura ilação. Encontramos documento que mostra que Alexandre Roberto Mascarenhas morreu em 1793 (AHU, secção de Moçambique, caixa 122, doc. 8, 6/1/1808), no mesmo ano em que Gonzaga casou com sua filha, Juliana de Sousa Mascarenhas. Portanto, pouco tempo teve para ajudar o sogro em algum trabalho.
Pela documentação, fica claro que Gonzaga, embora como advogado tenha prestado serviços a comerciantes negreiros, nunca se envolveu diretamente no tráfico de escravos. E, se sempre fez parte da elite do lugar, isso deveu-se muito mais aos seus próprios méritos, como único advogado formado em Coimbra e funcionário régio, pois, além de promotor do juízo de defuntos e ausentes, foi ainda advogado dos auditórios públicos, procurador da Coroa e juiz interino da alfândega. Só, já no final da vida, aparece como proprietário de 30 escravos (AHU, seção de Moçambique, caixa 121, doc. 98, 23/12/1807), o que, evidentemente, não é suficiente para incluí-lo entre os grandes comerciantes negreiros. Nem para apontá-lo como comerciante de escravos.
Isso deixa claro que, sem a pesquisa de arquivo, principalmente em fontes manuscritas – quando possível –, os estudiosos mais interessados em analisar a produção dos autores acabam por recorrer apenas a fontes impressas – o que é mais fácil, convenhamos –, repetindo e perpetuando, muitas vezes, involuntariamente, informações equivocadas ou deturpadas.
Se excedemos os estreitos limites de uma recensão, é porque o livro As pedras e o arco levanta questões instigantes, como as que Regina Zilberman, doutora em Letras pela Universidade de Heildelberg, na Alemanha, levanta no ensaio “Minha teoria das edições humanas: Memórias póstumas de Brás Cubas e a poética de Machado de Assis”, pedindo uma revisão da Teoria da Literatura e da História da Literatura a partir da contribuição que, na sua condição material, oferecem essas áreas de conhecimento e reflexão.
Para a autora, as teorias da Literatura, formuladas ao longo do século XX, tenderam a postular que, uma vez convertida a origem em sua obra literária, rompem-se os laços que remetem esta última a seus começos, o que avalizaria e comprovaria sua autonomia e auto-suficiência. “Significativas para a elaboração do objeto artístico, elas são depois rejeitadas, os antecedentes transformados em entulho a arredar”, observa.
Para Regina Zilberman, “num momento em que a História repensa seus fundamentos epistemológicos, e a pesquisa em obras literárias almeja ultrapassar os limites determinados pela orientação idealista dominante por longo tempo, talvez a investigação com fontes primárias tenha muito a oferecer”.
Sábias palavras. Estava mesmo na hora de um estudioso da estatura intelectual da professora Regina Zilberman colocar as coisas no lugar. Não é porque a História da Lirteratura nasceu no século XIX, sob o domínio do historicismo, que terá de ser sempre confundida com positivismo e quejandos.
A História da Literatura renovou-se e, como observa a professora Maria Eunice Moreira, doutora em letras pela PUCRS, no ensaio “Na rede do tempo: História da Literatura e fontes primárias – a contribuição de Joaquim Norberto”, volta a ocupar posição singular entre os estudos literários, “principalmente após a divulgação das teorias sobre a repercussão e os efeitos da obra através dos tempos”. Portanto, para a História da Literatura, tudo o que diz respeito a um autor interessa. E ponto final.
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AS PEDRAS E O ARCO: FONTES PRIMÁRIAS, TEORIA E HISTÓRIA DA LITERATURA,
de Regina Zilberman, Maria Eunice Moreira, Maria da Glória Bordini e Maria Luiza Ritzel Remédios. Belo Horizonte, Editora UFMG, 351 págs., 2004, E-mail: [email protected]
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]
Gazeta Mercantil, de S.Paulo - 16.01.2005
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