Por Fátima Ribeiro*
Cento e muitos livros diferentes só para as três primeiras classes do EP1. Já a caminho, um pesadíssimo sistema nacional de ensino de viabilidade e qualidade duvidosas à partida. Alguns aspectos que reclamam urgentemente mais atenção.
Ainda a tempo, ou já tarde demais, a ver vamos se é viável o ensino bilingue em Moçambique como está preconizado pela reforma curricular e já em fase experimental. À tona virá também se conseguirá garantir um mínimo de qualidade para atingir o principal objectivo que levou à sua criação: reduzir o insucesso escolar. Imperiosa é, sem dúvida, a introdução das línguas locais no ensino, pelas mais diversas razões que têm sido apontadas.
Permitir à criança expressar-se na língua que domina para facilitar a sua inserção na vida escolar, fazer com que a criança adquira uma base sólida na sua língua materna com vista a uma melhor proficiência nas outras línguas, e valorizar as línguas moçambicanas. Razões, todas elas, suficientemente importantes para nem sequer as pormos em causa. O que pretendemos é, tão-somente, chamar a atenção para questões que se prendem com a viabilidade e a garantia de qualidade do sistema proposto, que são, em Moçambique, e nos tempos que correm, igualmente relevantes.
Considerando já alguma, mas ainda ténue, experiência prática, o modelo agora pensado para o ensino bilingue está assim desenhado: as línguas locais — oralidade e escrita — são línguas de ensino e simultaneamente uma disciplina curricular nas três primeiras classes do ensino básico. Neste primeiro ciclo do EP1, o português é apenas uma disciplina de 4 horas de aula semanais em que, na primeira e segunda classes, se desenvolve a oralidade e, na terceira classe, se introduz a escrita. A partir da quarta classe, o português passa a língua de ensino, mantendo-se as línguas locais como disciplina(s) no segundo ciclo do EP1.
Paralelamente ao ensino bilingue, de facto com tantas variantes quantas as línguas locais (fala-se de 20 línguas), o estado oferecerá um sistema monolingue, em que o ensino é ministrado em português desde as primeiras classes. Haverá, portanto, programas, livros, turmas, professores, formadores de professores, órgãos/responsáveis do Ministério da Educação e Cultura a vários níveis, inspectores, apoio pedagógico, exames, etc. para o sistema monolingue e para o sistema bilingue. Aos pais dos alunos caberá optar por um ou outro sistema. Enfim, todo um sistema muito democrático, justo, sensível a questões de ordem psicológica, cognitiva, política, mas…
A enormidade de livros
A título de exemplo, peguemos nos livros. Um simples exercício de aritmética sugerirá imediatamente os tremendos recursos financeiros e humanos a mobilizar. Se considerarmos apenas a primeira classe do ensino básico, serão necessários, no mínimo, para o sistema monolingue, 2 livros em português (disciplina de Língua Portuguesa e disciplina de Matemática); e, para o sistema bilingue, 20 livros nas línguas locais para a disciplina correspondente, mais 20 livros de Matemática também nas línguas locais, mais 1 livro de português oral, isto é, 41 livros. No total, serão, pois, necessários 43 diferentes livros. Do mesmo número terão de dispor a segunda e terceira classes, que completam o primeiro ciclo do ensino básico.
Contas feitas, irão ser elaborados 129 diferentes livros apenas para Língua Portuguesa, Matemática e Língua Local das três primeiras classes do nosso sistema nacional de ensino, e tal enormidade somente falando de livros do aluno. Além destes, haverá certamente manuais do professor, e ainda algum material para educação visual, educação musical, ofícios e ciências.
Em quanto orçarão a concepção, a testagem, a execução e a distribuição de todos estes livros? Estará Moçambique capaz de reunir tão elevado montante, e de o fazer a custo zero para o utilizador, como se comprometeu no âmbito da Educação para Todos? E conseguirá fazer chegar todos esses livros às escolas, sistematicamente, no início de cada ano lectivo? Mesmo agora, em Fevereiro de 2005, e funcionando apenas o sistema monolingue, escolas há que vão receber livros com 45 dias de atraso, como se pode ver num comunicado do Ministério da Educação recentemente publicado na imprensa (1).
É possível que já nos tenham sido dadas garantias de fundos para o arranque do sistema, mas todos estes livros terão de ser reproduzidos, actualizados e também substituídos à medida que forem ficando ultrapassados. Se diminuírem ou forem reorientados os fundos dos doadores consagrados a Moçambique, e à educação em particular, não cairá imediatamente por terra todo um pesadíssimo sistema entretanto já em marcha difícil de reverter? Quanto tempo e recursos não se terão perdido? Que sequelas ficarão? De quantos anos mais precisaremos para instalar um novo sistema?
O problema dos docentes e outros técnicos de educação
Às já conhecidas dificuldades que o Ministério da Educação tem na angariação de professores qualificados e, sobretudo, na sua manutenção na actividade docente, outras se juntarão. Em primeiro lugar, desencantar todos os que constituirão o enorme corpo de autores, revisores e avaliadores de todos os manuais escolares.
Em seguida, recrutar professores para o sistema bilingue, sabendo-se desde já que cada professor só poderá ensinar na área correspondente à língua local que domina, e que muitas das zonas mais populosas são das mais carentes em recursos humanos. Depois, não só dar aos professores e outros técnicos a preparação em metodologia e didáctica do ensino bilingue, mas também instruí-los na própria escrita das línguas locais, que praticamente todos desconhecem.
Finalmente, contemplando a elevada mortalidade e morbilidade provocada pelo HIV/SIDA e a sua evolução nos próximos tempos, pensar tanto na reposição dos professores que forem falecendo, como na substituição corrente dos que por doença não puderem leccionar. Recordemo-nos que a fase em que nos encontramos é de epidemia de HIV, estando ainda a caminho a verdadeira epidemia da SIDA. Terão sido devidamente equacionados todos estes problemas?
Qualidade em questão
Moçambique obrigou-se a dar a todas as crianças um lugar na escola, mas comprometeu-se também a prestar um serviço educativo de qualidade. Num sistema como o previsto, tal objectivo não passará de um sonho distante, talvez uma utopia, e com o risco de, estando o sistema finalmente montado, não dar já resposta à realidade de então.
Num futuro próximo, permanecerão os livros feitos à pressa, a formação necessariamente “a despachar” dos professores para o ensino bilingue, os crónicos lamentos da falta professores com formação para a docência, agora exponencialmente reforçados, e, claro está, os consequentes resultados no sistema educativo. E se a fundamentação de todo o sistema está na construção de alicerces para se alcançarem melhores resultados, essa pretensa base sólida parece minada à partida. Basta pensarmos se com apenas 15 dias para adquirir noções de ensino bilingue e aprender a escrever nas línguas moçambicanas, como está presentemente a acontecer, conseguirão os professores ganhar um mínimo de segurança nas regras de ortografia para as transmitir a crianças que têm o seu primeiro contacto com escrita. Além disso, com a reforma curricular, o contacto dos alunos com a língua portuguesa da primeira à terceira classe do ensino bilingue reduz-se a quatro horas semanais, sendo todo o tempo lectivo restante preenchido pelas línguas locais.
Com uma redução em cerca de 80% da exposição do aluno à língua portuguesa nos três primeiros anos escolaridade, relativamente ao que hoje se faz, conseguirão essas muitas centenas de professores em regime de formação hiperacelerada garantir crianças com melhores bases em português para terem melhor aproveitamento nos níveis subsequentes (com português como língua de ensino), pressuposto básico de todo o novo modelo?
Precaução necessária
Sendo um sistema nacional de ensino uma das realidades que mais afecta, molda e condiciona a vida presente e futura de cada cidadão, e do país em geral, todas estas questões deveriam ser alvo de profunda e cuidada reflexão, antes que entremos por um beco escuro, cujo fim pode vir a ser um verdadeiro caos.
Posição avisada seria pensar-se desde já num modelo alternativo, e, paralelamente à aplicação experimental actualmente em curso, testá-lo também em algumas escolas anexas a instituições de formação de professores. A nosso ver, tal modelo, bilingue sem dúvida, terá necessariamente de responder a três requisitos: exigir menos recursos financeiros, humanos e técnicos; ser mais fácil e rápido de implementar; e contemplar um quadro que, infelizmente, não pode ignorar a dramática realidade da SIDA no nosso país. Isto é, terá, sobretudo, de contar com o que nós próprios possuímos, somos capazes de fazer e podemos pôr imediatamente em acção. Terá de contar muito mais com a nossa realidade concreta, com as nossas dinâmicas de sustentabilidade e com a nossa própria vontade. A um modelo alternativo contamos voltar num próximo artigo.
* Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas. Da mesma autora, e sobre a mesma matéria, o jornal Savana publicou o artigo Português, Língua Veicular: Algumas Reflexões sobre Modelos de Ensino (ou Carta Aberta por um Moçambique Estável e Sustentável), a 28/12/2001.
SAVANA - 18.02.2005