A Talhe de Foice
Por Machado da Graça
Estamos a começar uma nova fase da governação do País e creio que era importante que isso se reflectisse, igualmente, no campo das relações externas. E me parece que o caso simbólico mais importante, onde uma mudança será claramente entendida, é o escandaloso apoio que a nossa diplomacia tem dado ao aberrante Governo de Robert Mugabe no Zimbabwe. Fossem quais fossem os compromissos que obrigavam o anterior Governo a pactuar com o executivo que está a destruir aquele país vizinho, espero sinceramente que a doença não tenha contaminado também a equipa agora dirigida por Alcinda Abreu. Na verdade, as desculpas esfarrapadas para o apoio, subtilmente baseadas no argumento sobre a “reforma agrária” de Mugabe, já não podem esconder mais o que é um caso único de um Governo que, para continuar no poder, dá cabo da economia e da vida política de um país próspero e estável. O nosso anterior executivo, a começar por Joaquim Chissano, sempre se agarrou ao argumento dos farmeiros brancos, esquecendo, ou fingindo esquecer, que a maioria das pessoas que estão a sofrer com as tropelias criminosas de Mugabe não são os agricultores comerciais mas sim a maioria do povo zimbabweano. Um recente artigo no insuspeito e condecorado “Notícias” vem, no entanto, recordar-nos qual é a dura realidade. Segundo esse artigo, “líderes religiosos consideram que o Zimbabwe é, nos últimos quatro anos, uma nação oprimida com as pessoas a viver no medo”. As declarações foram feitas num culto religioso a favor de eleições pacíficas em Março próximo. E, diz o artigo, “um clerigo apelou aos zimbabweanos para ultrapassarem o medo e usarem as eleições para expulsar o mal do poder e substituí-lo pela paz e prosperidade”. No mesmo culto, o bispo católico Patrick Mutune afirmou que todos os zimbabueanos são culpados por terem colocado o mal no poder e este está a oprimi-los. Lamentou “que o Zimbabwe se tenha transformado numa nação sem liberdade, justiça ou paz” e “o povo está a viver com medo, porque sofre ameaças e intimidações constantes”. Na mesma cerimónia, o bispo metodista Cephas Mukandi afirmou que “se a maioria dos parlamentares, ministros e restantes membros da ZANU-PF se afirmam cristãos, não faz sentido que sejam os responsáveis pela violência, tortura e destruição de propriedade que habitualmente acontece no País”. Segundo ele, “milícias, agentes de segurança do Governo e veteranos de guerra de libertação instigaram à violência e assassinatos contra apoiantes da oposição nas últimas eleições, mas não houve penalizações por tais crimes”. Repare, leitor amigo, que os religiosos não usaram aqueles termos suaves, cheios de sub-entendidos, a que as igrejas normalmente nos habituaram para condenar governos. Falam abertamente do “mal” para designar o Governo de Robert Mugabe. Falam de tortura, de assassinatos, de destruição de propriedade, de violência eleitoral. Nos mesmos termos falam os sindicatos zimbabweanos e os seus camaradas sul-africanos. Nos mesmos termos falam figuras prestigiadas da região como o bispo Tutu.
Esperemos que nos mesmos termos passemos a falar nós também, deixando para trás uma cumplicidade que nos envergonha. É na nossa política para com o Zimbabwe que desejamos ver efectivada, em política internacional, a força da mudança.
SAVANA - 18.02.2005