A Asa da Letra
Por Mia Couto
Existia o cabrito. Todos o conhecíamos por pastar no património nacional. E havia o camaleão. Conhecido também pela velocidade com que mudava a cor da alma segundo as conveniências. Dou-vos a conhecer, agora, uma nova espécie. Trata-se de um híbrido entre camaleão e cabrito: é o cabritoleão. Para uma melhor identificação do bicho, eis algumas dicas provisórias porque, por definição, a nova espécie muda de cor como quem muda de penugem.
O cabritoleão é um híbrido, recebeu genes dos dois progenitores. O resultado não é uma simples soma genética. Mas uma multiplicação. O cabritoleão percebeu que para ser cabrito não basta ruminar. É preciso encontrar a apropriada árvore onde ficar amarrado. Afinal, o cabrito não come apenas capim. Começa por comer oportunidades. E a oportunidade é como tudo o resto: não existe se não for criada. Os olhos desta nova espécie são os camaleão: olham para trás e para a frente, em simultâneo.
Por isso, o cabritoleão investiu toda a sua arte no momento da transição de um Governo para outro. Estava ali uma porta entreaberta, o bicho queria-a escancarada. Começou por escrever longos textos laudatórios ao novo Presidente. Quem sabe o Presidente olhasse para ele? Porque ele seria um nome bastante ministeriável. O passarinho na floresta só se nota quando canta alto. Diz o provérbio e o nosso amigo aplicou o ensinamento. Foi assim que o cabritoleão se aprimorou como um vigoroso cronista. Não havia jornal em que não surgissem as suas contundentes críticas ao “deixa-andar”. Antes, ele sempre deixou andar o “deixa-andar”. Mas agora, perante o novo lema, ele se convertera num cavaleiro andante no combate contra permissividade e a displicência.
E a corrupção? O homem tornou-se, subitamente, num autêntico D. Quixote na senda por uma nação limpa e moralizada. Ele que nunca levantou um dedo contra nada, surgia agora assanhadíssimo. A situação, escrevia o nosso cabritoleão, chegou a ponto intolerável. E ele que, antes, se tinha batido por uma amnésia colectiva para esquecer Samora Machel, ele surgia agora empunhando os valores da Primeira República. Sendo descendente de cabrito, ele se convertera, subitamente, no maior denunciante do cabritismo. Derrubava a árvore onde, antes, estivera amarrado. E apagava apressadamente os vestígios da sua ruminação cuspindo os bens públicos que digeria na avantajada pança. Feitas as contas: ficaria assim: todos falavam na corrupção e era o melhor meio de ninguém ser culpado de nada. Ele, pelo menos, saía impune. Convenhamos: alguém, com boa-fé, pode responsabilizar um cabrito?
Se antes ele se dera bem em manada, o cabritoleão andava, agora, bem sozinho, em bicos de patas. Todo o gesto, toda a palavra tinha a mesma intenção: olhem para mim, eu que fui convenientemente invisível durante o anterior regime. Vejam como sou audível, eu que estive sempre calado. Por exemplo, viram-me no funeral do Siba-Siba, no funeral do Cardoso. Mas depois, alguém mais me viu ou ouviu reclamando por justiça? A vida é assim, meus amigos, tudo se esqueça e convém mesmo não lembrar para esquecer ainda melhor.
Assim falava o cabritoleão, enquanto aguardava, ansioso, pelas novidades. Os ministros foram nomeados e o cabritoleão espreitou, depois de longa insónia, a lista e não descobriu lá o seu nome. Esperou pela segunda rodada: e, uma vez mais, não se encontrou. O seu coração contraiu-se de angústia: as árvores estavam sendo distribuídas juntamente com as pastagens e a ele não lhe calhava nada?
Desiludido, o cabritoleão encontrou o coelho. Este escutou as suas mágoas e lhe deu o seguinte conselho: governante nem era a melhor solução. Porque o governante acaba quando acaba o Governo. Ele que escolhesse algo mais duradouro. Um posto que fosse eterno.
— Mas eterno? Que panela pode ser eterna ?, perguntou o cabritoleão.
E o coelho, na sua lendária sapiência, respondeu:
— O chefe de uma comissão de inquérito!
Os inquéritos, sabe-se, são obras para não terem fim. Veja-se o caso da fuga de Anibalzinho. O da morte de Siba-Siba. O dos adicionais esclarecimentos do caso Carlos Cardoso. E outros, tantos, ligados aos assuntos mais quentes. O cabritoleão bem que poderia ter morada eterna numa comissão de inquérito. Mesmo que roubasse os fundos da comissão ele estaria a salvo: uma outra comissão de inquérito haveria de esclarecer o assunto. Com tempo, é claro. Como disse o Juiz Paulino, o fruto cai quando está podre. Desde que a árvore não caia primeiro.
O cabritoleão, satisfeito, despediu-se do coelho. Olhou para a alma: que coloração seria, agora, a mais conveniente? Debruçou-se no capim e já ia abocanhar um naco do património público quando, à cautela, suspendeu o apetite. E se as comissões de inquérito começassem a funcionar de verdade?
SAVANA - 18.02.2005