José Pinto de Sá
Desde o tempo de jovem irrequieto que cantava músicas de Bob Dylan até ao momento em que foi cobardemente assassinado a tiro em Maputo, o jornalista Carlos Cardoso fez um percurso que marcou Moçambique e todos os que alguma vez com ele se cruzaram.
Com a morte de Carlos Cardoso, cobardemente assassinado a tiro em circunstâncias que provavelmente ficarão para sempre por esclarecer, Moçambique perdeu, simultaneamente, um jornalista brilhante e um cidadão exemplar. Homem de coerência indefectível, manteve-se até ao fim um apoiante da Frelimo contra tudo e todos, incluindo a própria Frelimo, e terá sido, como os amigos gostavam de lhe chamar, o último dos samorianos.
Nasceu há 49 anos na cidade da Beira, numa família da burguesia colonial portuguesa. Seu pai, que dirigia uma fábrica de lacticínios, mandou-o estudar na África do Sul, onde completou o ensino secundário e se matriculou na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo. A “Wits” era, no início da década de 70, um viveiro de activistas anti-apartheid e terá sido no campus, frequentemente devassado por rusgas policiais, que Cardoso fez o seu baptismo de militância estudantil. Amigos recordam-no como um jovem irrequieto, de cabelos compridos ao jeito da época, tocando viola e cantando “protest songs” de Bob Dylan ou as suas próprias composições. Em Setembro de 1974, foi detido pela polícia sul-africana durante uma manifestação de apoio à Frelimo em Joanesburgo e sumariamente extraditado para Lisboa. À chegada a Portugal limitou-se a comentar que o apartheid o tinha repatriado para o país errado, e tomou o primeiro avião para Moçambique.
A questão da identidade nacional, que preocupou e, por vezes, dilacerou a maior parte dos intelectuais moçambicanos de ascendência portuguesa, pareceu-lhe sempre alheia.
Desencontrando-se da família, que deixou Moçambique na grande vaga dos “retornados”, o jovem aderiu de alma e coração ao projecto político da Frelimo com inquebrantável fidelidade, tenacidade e imaginação.
Esses traços de carácter atraíram-lhe, desde os primeiros dias de Independência, a suspeição de um partido marxista-leninista recém-saído da guerrilha, altamente militarizado e desconfiado de toda a heterodoxia. Nesse clima, Cardoso permaneceu durante cinco anos largamente “inaproveitado”, trabalhando primeiro na revista Tempo, como repórter, e depois nos serviços de música da Rádio Moçambique.
Em 1980, porém, as suas qualidades e a sua incrível capacidade de trabalho já tinham dado nas vistas e Cardoso foi nomeado editor da Agência de Informação de Moçambique, cuja reforma tentou empreender. Exercer o jornalismo com probidade num regime de partido único e dirigir a agência de notícias estatal num país dilacerado pela revolução e ameaçado por vizinhos hostis era uma tarefa tão difícil quanto perigosa.
Apoiada pela Rodésia, primeiro, e pela África do Sul, depois, e alimentando-se dos erros económicos de uma Frelimo cada vez mais refém do sovietismo, a Renamo foi evoluindo no terreno e ganhando posições, particularmente no centro do país. No entanto, à luz da política oficial os rebeldes anti-comunistas não passavam de “bandidos armados”, cuja simples menção era proibida na comunicação social, rigorosamente controlada pela censura frelimista. Quando Cardoso abordou a questão numa coluna do jornal Notícias, foi simplesmente detido durante seis dias, sem culpa formada.
Embora a sua detenção tivesse sido, provavelmente ordenada pelo próprio Samora Machel, uma vez libertado Cardoso reassumiu as suas funções e intensificou as relações de trabalho com o presidente, que passou a assessorar. Essa colaboração estendeu-se até à morte de Machel, em 1986, que Cardoso já previa há algum tempo, tendo sempre insistido que o alegado acidente foi na realidade um assassinato político executado pelas forças de segurança do apartheid com cumplicidades internas na Frelimo.
Após a morte de Machel, por quem nutriu até ao fim uma admiração sem limites, Cardoso atravessou uma crise profunda, que o levou a abandonar o jornalismo e a dedicar-se à poesia e às artes plásticas, que exerceu com a singularidade e a criatividade que punha em tudo o que fazia.
Ao cabo de três anos de afastamento, porém, não suportou mais essa “reforma antecipada” e regressou ao jornalismo, participando na criação da Mediacoop, o primeiro grupo de imprensa independente no país. No interior do grupo, concebeu e criou, em 1992, o primeiro jornal do mundo distribuído por fax, o MediaFax.
Nessa folha, Cardoso podia enfim dar largas à sua imaginação e as suas propostas ao governo tinham tanto de irreverente como de inventivo. Fazer da marijuana uma das grandes culturas do país ou incentivar as crianças a plantar papaieiras trocando sementes do fruto por berlindes foram apenas duas das centenas de sugestões nascidas da sua imaginação sem tréguas, que tornaram o MediaFax o mais inventivo e ao mesmo tempo o mais credível dos órgãos de informação de Moçambique.
Para esse sucesso editorial terá sido determinante o entusiasmo transbordante que imprimia a todas as suas actividades e que sabia transmitir à equipa de jovens colaboradores que foi formando e que lhe devotava uma mística sem limites. Quando quis aumentar-lhes os salários e a administração da Mediacoop se opôs, abandonou a cooperativa com os seus homens e fundou outro diário distribuído por fax, o Metical, dedicado sobretudo a matérias económicas.
Nas suas colunas desenvolveu coerentes combates em defesa do empresariado nacional contra as “pressões globalisantes” do FMI e do Banco Mundial, encabeçando, por exemplo, a campanha contra o desmantelamento da indústria de processamento de cajú que aquelas instituições preconizavam. Com a mesma intransigência com que se batia por soluções económicas inovadoras, combateu a crescente corrupção entre os dirigentes políticos do país, e esse processo veio a afastá-lo mais ainda de uma Frelimo em que cada vez se reconhecia menos, embora nunca tivesse assumido inteiramente a ruptura. Em 1998 integrou a lista independente “Juntos pela Cidade” e foi eleito para a Assembleia Municipal de Maputo, mas mesmo aí permaneceu fiel ao que considerava o ideário de Machel. Numa ocasião, no decurso de um aceso debate entre a sua bancada e a maioria frelimista, não se conteve e gritou aos seus oponentes: “Vocês não são a única Frelimo nesta sala”.
Nos últimos dias, Carlos Cardoso investigava uma alegada fraude bancária cifrada em milhões de dólares, e já tinha recebido ameaças de morte. Ignorou-as, apesar dos múltiplos avisos dos amigos, a quem respondia, meio a brincar, que a morte não lhe fazia medo porque acreditava na reencarnação. À sua mulher, a jurista norueguesa Nina Berg, ele confidenciou, dias antes: “A vida já me deu mais do que eu queria”.
O Mundo Português 15 - Dezembro de 2000