Luís Carlos Patraquim
O Mundo em Português No.3, Dezembro de 1999
Reaparece a questão do papel a conferir aos “sectores do poder tradicional” no quadro institucional do país. Moçambique vive um “processo democrático em curso”, um caminho livremente imposto, onde a questão da etnicidade não pode voltar a ser ignorada e os factores culturais são tão decisivos como os económicos.
A cronologia e os números são simples e brutais de dimensão utópica e messiânica: Moçambique torna-se independente em 1975; as nacionalizações da terra, da saúde, do ensino, de quase tudo, ocorrem a 24 de Julho do mesmo ano; o encerramento de fronteiras e do porto da Beira – que servia a então Rodésia do Sul – é anunciado a 3 de Fevereiro de 1976 e a Frente de Libertação de Moçambique constitui-se em partido marxista-leninista em Fevereiro de 1977.
Está instaurada a democracia popular, a economia planificada, a opção pelas aldeias comunais, a mobilização em jeito de agit-prop da população inteira para as “grandes tarefas da reconstrução nacional” e para o afrontamento do inimigo externo plasmado no “imperialismo” e no “apartheid”. Começa a valsa da solidariedade com os países do Leste, decretados “aliados naturais”. Na Rodésia, logo em 76 surge o MNR (Movimento Nacional da Resistência), mais tarde Renamo.
Ainda em 1977, o partido organiza as primeiras eleições para as Assembleias do Povo. Fala-se em democracia directa. A ideia é descentralizar, “libertar a iniciativa criadora do povo”. Só os militantes da Frelimo são obviamente eleitos. “Do Rovuma ao Maputo” celebra--se a aliança operário-camponesa e anuncia-se os primeiros grandes projectos quinquenais. Fica decretada a criação do “homem novo”, um misto de ética revolucionária e de viagem às fontes perdidas da afro-moçambicanidade, extasiada na resistência ao colonialismo português e reconfirmada com a luta armada de libertação.
O reiterado discurso em torno da unidade nacional, o recalcar de todos os conflitos de índole rácica ou étnica, o proclamar em névoa de uma nação em que não se queria ver outros contornos de identidades de grupo, a perseguição feroz às chamadas autoridades tradicionais, são características deste período que se prolonga até à assinatura, a 16 de Março de 1984, do então controverso Acordo de N’Komathi.
Aliás, o paradigma do mundo era clamorosamente simples e bem perceptível pelos videntes da revolução: uma linha justa, correcta, ao serviço das massas, imanente ao próprio Ser da Frelimo e uma linha reaccionária, já derrotada no grande laboratório das “zonas libertadas” e no “processo dialético da luta” mas para cujos resquícios se impunha a permanente mobilização e, por vezes, o castigo, fosse a pena de morte em Tribunal Militar Revolucionário, fosse o trabalho “regenerador” nos campos de reeducação.
O tempo do mundo para o homem moçambicano começara a 25 de Junho de 1962, dia da criação da Frente de Libertação de Moçambique. Um milhão de mortos mais tarde, conseguida a libertação do Zimbabué e o fim do “apartheid”, foi a independência – qualquer que fosse a acepção – e o interesse nacional moçambicano que ficaram em causa.
O Acordo de Roma de 1992, assinado por Joaquim Chissano e Afonso Dlakhama, vinha pôr cobro a uma “guerra civil” nunca oficialmente assumida pela Frelimo e dava aos “bandidos armados” um protagonismo e um estatuto de respeitabilidade que, a nível do político, iria marcar aquilo a que podemos chamar a II República.
Parte do falhanço económico dessa fase encontra na obra de Marc Wuyts uma das suas explicações, com Wuyts a enfatizar o papel do comércio privado como mediador entre o Estado e o chamado campesinato. Numa situação de guerra e de crise económica, afirma o investigador holandês sediado em Maputo, “o mercado paralelo torna--se uma força dominante que sabota a coesão de qualquer estratégia de mobilização popular”.
Preparação para a mudança
N’Komathi marca uma viragem. Entre o jogo desestabilizador do apartheid e a estratégia de afrontamento “guerrilhado” do país, Moçambique – em decisão quase solitária de Samora Machel mais a sua entourage íntima – opta por um relacionamento de Estado a Estado, reconhecendo implicitamente a complexidade da sociedade sul-africana à revelia das teses da facção do ANC que via a África do Sul em situação colonial.
Sabe-se como os resultados não foram os pretendidos e como o prolongar da guerra e das contradições no interior de Moçambique levaram à progressiva politização e (alguma) autonomia da Renamo, pelo menos enquanto força que expressava, embora pela violência extrema, o vácuo deixado pelo exercício redutor da Frelimo.
Mas a adequação progressiva em direcção ao simples admitir das conversações com a Renamo vem-se fazendo paulatinamente, pelo menos desde a viragem encetada por Samora Machel em 1983, quando visita sete países da Europa Ocidental, incluindo Portugal. Contudo, é o fracasso de N’Komathi e o agudizar de um conflito, mais caracterizado pela barbárie do que por uma lógica de guerrilha ou de guerra convencional, que se constituem em factor decisivo daquela atitude, aliado ao exaurir quase absoluto do tecido social e do esforço produtivo do país.
Apesar do erro histórico e último gesto de despotismo esclarecido que foi a “Operação Produção”, também em 83, fazendo engrossar ainda mais as bases de recrutamento para o movimento rebelde a partir dos famigerados campos de reeducação, a ordem político-jurídica do país conhece transformações significativas. A aprovação do famoso Plano de Reabilitação Económica decorre ainda em vida de Samora. Chegam à rua ecos de imperceptíveis conflitos no seio da Frelimo. Começa algum protagonismo da sociedade civil, sobretudo ao nível dos centros urbanos, quase todos cercados pelo “mato em fúria sangrenta”. Publica-se uma “Lei da Amnistia” para os “bandidos armados”.
No plano institucional e, significativamente, a viragem só se dá em 1989, no V Congresso da Frelimo, três anos depois da morte do “comandante-marechal”. O partido volta a uma lógica de frente, aglutinando os interesses da pequena burguesia citadina, posicionando-se numa lógica doutrinal de inspiração social-democrata. Anuncia-se o projecto de uma nova Constituição com a novidade decisiva de consagrar no seu texto a separação entre o partido e o Estado. A agitação social que percorre as principais cidades do país, decorrente da aplicação do PRE, faz surgir novos actores sociais já fora da esfera quer do partido, quer do Estado. O país ia-se modificando no interior das próprias áreas controladas pela Frelimo. No imenso território do “mato” a “causa das armas” fazia o seu percurso inexorável.
Moçambique refém da democracia?
É pacífico que as eleições de 94, descontados alguns golpes de teatro de Dlakhama, foram as eleições da paz. Autoproclamando-se paladina da “gesta” democrática, a Renamo teve o mérito de renunciar à guerra e de aceitar as regras do jogo, um jogo tutelado por interesses maiores e que ela tinha a consciência de ter servido. De alguma maneira desarmada na sua argumentação pela pronta adequação da Frelimo ao mesmo paradigma, a Renamo mantém uma “reserva de ameaça” na imensa maioria silenciosa da sua anterior base de apoio e ensaia, no espaço urbano, um exercício de adaptação e de criação de um suporte sócio-económico tanto mais difícil quanto “arrematado” pelo seu opositor principal.
Cinco anos depois, os discursos da Frelimo e da Renamo conhecem agora uma radicalidade que explora todos os fantasmas da situação anterior. Endógena ao percurso de ambas as formações, por antonomásia, reaparece a questão do papel a conferir aos “sectores do poder tradicional” no quadro institucional do país. A Renamo exige. A Frelimo admite.
Refém de um paradigma económico que vai beneficiando a minoria, o Estado tenta reerguer-se em cumplicidade com uma “sociedade civil” heterogénea, biunivocamente dependentes do apoio externo em investimento no sector produtivo, na simples manutenção do aparelho, na constituição de um sistema bancário e financeiro erguido a partir do exterior, paredes meias com um amplo sector informal onde gravita a maioria da população, estruturalmente dependente do gigante sul-africano.
A aliança Renamo/União Democrática (10 partidos) e a Frelimo enfatizam o princípio da “boa governação” e a atenção às questões sociais. Contudo, um muito hipotético realizar dessas promessas está na razão directa do cumprimento das políticas macroeconómicas preconizadas pelo FMI e pelo Banco Mundial, pela contínua criação de condições apetecíveis para o investimento externo em política de “país aberto” a roçar o off-shore, em detrimento do reforço do papel do Estado único, garante da possibilidade da sua concretização.
Este “processo democrático em curso” é o caminho livremente imposto, onde a etnicidade é dimensão a considerar e os factores culturais desempenham um papel tão decisivo como a primazia (estulta) do económico.
Todos eles configuram a análise política (teórica e/ou conjuntural) para a percepção do que vem sendo este país de nações.