OS DEMAIS SINAIS
Por Afonso dos Santos
A mim, que sou do Norte, discriminem-me positivamente, e nomeiem-me dirigente. Discriminem-me a mim, individualmente, porque todos os outros, que são do Norte, são regionalistas, só eu é que não. Eu até sou mais do Norte do que eles, pois sou do distrito que fica mais ao Norte, e, mesmo nesse distrito, a minha casa fica mais ao Norte do que a do meu conterrâneo. A mim, que fui estudante das escolas das zonas libertadas, discriminem-me positivamente dos meus ex-colegas, porque todos os outros não se instruiram mais, e estão desinteressados da política, só eu é que não. Eu até me formei como doutor no estrangeiro e até escrevo nos jornais. A mim, que sou indiano, discriminem-me positivamente dos outros indianos, porque todos os outros são traficantes e ligados ao terrorismo, só eu é que não. Eu até sou oficial de programas numa agência norte-americana de ajuda ao desenvolvimento e à reconstrução. E até sei que o governo do qual faz parte a senhora Condoleezza Rice – que também foi premiada com uma discriminação positiva – esse governo vai lançar mais uma guerra, para destruir o que está construído, que é para, depois, essa agência poder apoiar a reconstrução. A mim, que sou branco, discriminem-me positivamente, pois somos uma minoria, e até nos sentimos tão isolados, caramba!, que um lugarzinho no poder nos deixaria mais consolados. Mas discrimem-me a mim, individualmente, porque todos os outros brancos são racistas, só eu é que não. Eu até tenho um amigo chamado Muchanga. É só um, mas chega. Até porque convém não exagerar, senão ainda começo eu a escurecer. A mim, que sou negro, discriminem-me positivamente dos outros negros, porque todos os outros não valorizam a nossa raça e relacionam-se de modo igual com toda a gente, sem distinção da cor da pele, só eu é que não. Eu até sou cem por cento negro, sou racista puro: sei afirmar activamente o orgulho da raça negra, que é representada por mim. Eu só me relaciono com uaites e cafuzos e monhés bem posicionados (!), com quem faço as minhas parcerias inteligentes, provando assim que “o negro também é inteligente”. Aliás, no meu caso, basta a cor da pele para ser inteligente. Essa coisa de gente pouco inteligente e racista só existe nas outras raças. Na raça negra não existe nada disso, e por isso é que a nossa raça é superior. Apesar desta necessidade que sentimos de andarmos sempre a fazer comparações com as outras raças. A mim, que sou deficiente, discriminem-me dos outros deficientes, porque todos os outros são complexados, só eu é que não. Eu até vou a todos os comícios, e até sei gritar “vivas” mais alto e mais vezes. A mim, que sou mulher, discriminem-me das outras mulheres, porque todas as outras aceitam ser subjugadas pelo homem, e até aceitam casar com polígonos... Não é assim que se diz? Ah!, desculpem, os meus conhecimentos são um pouco fracos, mas não é isso que interessa, o que interessa é que eu sou mulher. É assim, prontos!: elas aceitam casar com polígamos, só eu é que não. Eu até cortei relações com um homem casado que me ofereceu este carro, porque ele não quis comprar uma casa para mim. Como vêem, eu sei exigir, por isso sou mesmo a pessoa mais indicada para acabar com o deixa-andar. A mim, inculto jornalista cultural, discriminem-me com passeios ao estrangeiro, em cada viagem presidencial. Para mim, escritor, numa boa embaixada um lugar de consultor. Para mim, cabrito, um tachito. Não é por acaso que são sempre indivíduos isolados que aparecem a advogar essa aberração político-ideológica chamada “discriminação positiva”. Nunca se viu que algum colectivo de pessoas, ou alguma organização representativa de algum grupo apareça a exigir: “Nós todos queremos uma discriminação positiva!”. É que, se essa “discriminação” abrangesse todo o grupo, simplesmente deixaria de sê-lo. Para qualquer grupo social como um todo, a única opção viável é a de lutar por direitos iguais para todos, visto que essa discriminação dita positiva, afinal, só é positiva para as ambições desmandadas de alguns indivíduos isolados, enquanto os outros permanecem cada vez mais na mesma. Ou ficam pior, uma vez que, quando algum desses felizes discriminados ascende a um lugar de poder, continua a fazer isso mesmo: a discriminar-se a si próprio cada vez mais, açambarcando a seu favor os recursos que deviam ser utilizados para servir a sociedade. A tal “discriminação positiva” constitui, pois, uma forma de manter e disfarçar a desigualdade e a injustiça social de que são vítimas todos os outros indivíduos do mesmo grupo do feliz discriminado. Além disso, se um indivíduo obtém facilidades e benefícios na base de factores biológicos, ou de favoritismo, e não na base do seu trabalho e mérito pessoais, ele não fará mais do que disseminar a mediocridade na sua actividade, e à sua volta. No fundo, essa “discriminação positiva” serve realmente para favorecer minorias, mas umas minorias bem pequeninas, uma espécie de minorias personalizadas. Por isso, a “discriminação positiva” não é mais do que uma faca cravada nas costas da maioria. A expressão “discriminação positiva” tem como origem uma concepção política designada “affirmative action”, que é originária de ex-colónias britânicas. Então, até dá para finalizar assim: Affirmative action? Bullshit! SAVANA - 11.03.2005