Missa Pagã
Por Fernando Manuel
A Maria Agrapina Malendzele entrou como servente de terceira “B” na Justo Menezes aos 17 anos de idade em 1969. Na altura, a Justo Menezes era uma fábrica que se poderia considerar como todas as outras quaisquer alinhadas ao longo da Avenida de Angola para lá. Para lá estou a dizer isso mesmo: a Justo Menezes ficava para lá.
Rigorosamente: ela, a JM, ficava em frente, mas não tanto em frente, estava era ligeiramente enviesada em relação à Guérin, agente da marca Vokswanj. “Da Alemanha, essa marca”, como juravam os mais velhos a limpar os bigodes grisalhos depois de mais um mudois do uputsu da tia Carlota.
Conversas cuja profundidade só mesmo os lourenço-marquinos conseguem entender: é, pois, para eles que eu explico, recordando: do Aeroporto Gago Coutinho partiam duas carreiras dos Serviços Municipalizados de Viação: uma a caminho da Baixa, Praça Mac Mahon. Era o 13. Partia ainda outra, a caminho do Museu: era a 18. Todas estas — todas é exagero, eram só duas. Seja como for, o 13 e o 18 compartilhavam a Avenida de Angola na saída. Também na entrada.
Vou falar da entrada, para situar rigorosamente a Justo Menezes, empresa onde a Agripana entrou como servente de terceira “B” aos 17 anos, em 1969.
É tal como digo: vinha-se do liceu Salazar na 18, faziam-se aquelas curvas todas ao longo da cidade, um pouco antes do almoço — 11 e 20, por aí — as casas frescas, alegres, a odorar queijo fresco, alheiras, iscas de fígado, bacalhau e grão de bico, azeite doce — como dizíamos nós, na doçura da nossa pele negra, alma branca de tão virgem — o vinagre, o vinho branco, as senhoras brancas de roupa branca com a pele a estourar de calor lembrando uma rodela de chouriço num fogareiro a carvão, o rapazinho preto de roupa branca atrás das senhoras, com dois perdigueiros à trela e elas a conversar aquelas trivialidades que as senhoras ociosas conversam desde o tempo em que a Maria Madalena foi quase crucificada por ter ousado amar e ser amado por Joshua, filho de Emmanuel.
E então o 18 chegava ao fim disto tudo e o menino negro, logo que se contornava o largo, relaxava. Via à sua esquerda a Irmãos Robby, para onde embicava o 19 e o 7. E, quase que por milagre, o Tijuca. Para trás ficavam os suculentos bifes com molho à algaraviada, do Solar Familiar. E, fascinado, o menino olhava para as sapatilhas esparramadas na montra. Mas o que prendia mesmo os olhos do menino eram as guitarras acústicas, formas castanho escuras, meninas negras da sua infância truncada em Furvela, a montra era a SOMOREL.
À direita era o parque de táxis, Mercedes Benz 190 pintados de preto no corpo, o céu deles era amarelo. E uma cabine telefónica. E os taxeiros à espera, spécimen de homens brancos de peito peludo, vermelhos de tanho toucinho mal amanhado e vinho tinto de barril na Casa do Porto, de Lisboa, da Madeira...
E, deslizando lentamente, a 18 passava a seguir pela terminal da Manuel Antunes, o Jardim Gouveia — onde beijei pela primeira e última vez aquela que foi a minha primeira e única paixão, casada agora com as bancas de vale tudo no Fajardo, gorda que nem a porca do Só Santos na quarta-feira de cinzas — e a 18 ia descendo, o calor a matar, via de passagem o meu local de pecadilhos nocturnos, o Vasco da Gama, Elvis Presley, Suspiscous Mind, jud box, um escudo, o bairro indígena à esquerda, o dispensário das mamanas Marias de todos os Fernandos de todo o mundo, a esquadra do bairro lá longe, a escola, os limites do prostíbulo do Matlotlomana, a lixeira, o forno onde se queimavam, por via da caridade da Câmara Municipal de Lourenço Marques, os cães vadios, a Guérin à esquerda e à direita, a Justo Menezes.
Foi na Justo Menezes que a Maria Agipina Malendlezele entrou como servente de terceira “B”, aos 17 aos, em 1969.
A Justo Menezes era uma fábrica como muitas outras alinhadas na Avenida Angola. Era, contudo, diferente. Porque era a única que fabricava luz. Não a luz crua dos gabinetes. Das redacções. Dos escritórios. Dos quartos nus e desumanizados dos prostíbulos de hoje em dia. A Justo Menezes fabricava aquela luz férica que atrai o lumpen do campo para as cidades, como aqueles insectos malucos - malucos como todos os poetas - que se atiram à chaminé do candeeiro aceso, sabendo que vão morrer, e mesmo assim se atiram pelo prazer de morrer em luz, na plenitude da luz.
A JM fabricava painéis publicitários, luzes para cabaretes, luz onde tudo era nada, nada era tudo, só o que apetecia era fazer loucuras, amar, embriagar-se com champanhe e dizer, suavemente, como o melhor da música brasileira: “Quando a gente ama diz coisas que nem sabe: lambe-me/bate-me/arranha-me”.
Assim era a Agripana aos 17 anos.
“Falando francamente, senhora: não faço ideia de quem a senhora possa ser.”
“Tem razão. Eu sou da Agripa. Foi o senhor que me admitiu na Justo, em 1969. Fiquei muito impressionada por ver um preto, um pouco mais velho do que eu, a dar ordens, com segurança, tranquilo, numa empresa de brancos. Quis seguir o seu exemplo.”
“E conseguiste?”
“Sou engenheira electrotécnica. Fiz mestrado em 2000, em Xangai.”
“Quem me dera. Deves ser muito feliz.”
“Lembras-te duma coisa que me pediste durante anos e neguei também durante anos?”
“Lembro-me. Mas para mim tudo isso é passado. E...”
“Loko: vivo obcecada pelo sucesso profissional. Mas preciso de me sentir como se sente qualquer mulher quando é mulher.”
Uma eterna pausa.
“Loko: eu continuo a mesma Agripa que entrou na Justo Menezes virgem, aos 17 anos. Gostaria que fosses tu o primeiro a ver o que guardei para ti durante este tempo todo.”
A Justo Menezes ficava um pouco antes do Cinema Império, onde eu ia ver o Lee Van Cleef a mascar tabaco e cuspir na cara do Hugly Jhon Litle Marian.
SAVANA - 11.03.2005