São passados alguns dias desde que deixei a terra mãe, pra nesta terra prima, ver outros encantos e de outras verdades me nutrir. Deixei pra trás o ninho materno e a rotina da malta, pra outros mundos descobrir. Deixei pra trás o som do tambor e a viva voz afro, que anuncia o novo dia, pra nesta enchente descobrir o outro lado da mesma voz.
Como um rio que parte ao oceano, que vai e perde-se na imensidão do mar e das águas, assim me descubro hoje neste lugar. Ficou no correr desse rio a saudade dos vários montes negros e alegres, das planícies que cruza, dos animais que nele se embebedam, das povoações que nele se banham e mais uma vez se vitalizam na sua frescura, pra perder seu brilho no oceano. Ficaram pra trás os peixes que não podem viver da água salgada. Nada leva, senão folhas secas, saudades e o medo de nunca mais voltar. Assim sou eu, um rio que desaguou neste oceano que se chama sampá, sem medo porque o regresso é a lei. Deixo pra trás a solidariedade dos irmãos. É, pertenço a um lugar onde todos são irmãos e amigos. Pertenço a um lugar onde não falta o sorriso na face dos homens, onde mesmo sem destino, as pessoas correm com alegria. A alegria de ver o novo dia. Não há maior felicidade que essa. O meu povo define a sua felicidade consoante o sol que os ilumina, consoante à água que bebem e pelo que comem em cada dia. Nada é inútil, as pequeninas coisas tem valor sem igual, porque apreendemos a dar valor as coisas. Concordo que o homem é a medida de todas as coisas.
Deixo pra trás o seio da namorada. O calor africano de um amor verdadeiro, despido dessa grandeza do oceano, buscando apenas a paz do espírito, a realização humana e a obediência à natureza. Deixo aqueles olhos brilhantes, o corpo enrolado na capulana e a voz mágica de quem aprendeu a dizer amo-te uma só vez, e a um único homem.
Deixo a soceguidade da cidade, sem carros, sem fumos, sem ruídos, sem enchentes, onde não há anônimos, mas irmãos, seres humanos, nascidos do mesmo Pai.
Deixo o leito merecido, a concha mágica, o suco da fruta e a paz perfeita pra nadar no mar. Deixo pra trás o canto das crianças, os contos dos velhos e o cheiro da natureza, pra aceitar que, como rio, preciso salgar-me. É isso que rompe as diferenças: nutrir-se do ácido da vida que Deus escondeu no mar, o sal. O sal que dá um novo sabor ao pão, o sal que lá na terra mãe, serve pra conservar a carne e o peixe sem podridão e que aqui serve pra oferecer ao mar uma cor diferente. Será que o rio precisa se salgar? Porque é que ele não apreende com os peixes que no mar, no rio ou no lago não se deixam salgar? Porque é que não apreende com as aves, as plantas e com as estrelas que no mar, no céu ou na terra eles não se negam si mesmos? Será que o rio precisa se salgar? Negar sua doçura, sua cristalidade e seu correr livre e independente pra se salgar e ser mais um no mar? Sim, é isso que faz dele água do mar, porque já não é rio.
Esse rio sou eu, são também os outros como eu, que correm uma eternidade pra poder despejar no oceano a grandeza das historias do continente e salgar a mente com outras verdades, como se canta: “verdades nuas dessas tempestades, que me desarreigam sem piedade para esmorecer as minhas realidades.”
Nesse mar, o rio que sou, conhece outros rios, cobertos de muitos Eus e que ergueram este oceano há centenas de anos antes. Eles que encheram de água e nutriram os peixes, tanto o graúdo como o miúdo. Esses rios, que como buffalo soldier, construíram este oceano, são os mesmos que ainda buscam o sal. O sal pra terem sabor. O sal pra não apodrecerem. É aqui onde me encontro, tentando salgar minha essência. Salgar pra o bem, salgar pra mostrar que todos os rios no mar ou no oceano são iguais, porque todos são a água que Deus criou, a água que todos os dias evapora pra dar lugar outras vidas. E se os rios se salgarem, será que vale a pena voltar? Voltar pra onde? O que os tornará igual aos outros rios que até hoje correm sem sal e mesmo assim lavam os pés da humanidade, embebedam os animais e florescem os campos. Os rios que mesmo sem sal, brilham as planícies e limpam as montanhas de áfrica e do mundo.
Custódio Duma (Moçambicano) em S. Paulo - Brasil