Sou da geração Samorista. É como decidi chamar aos que nasceram no desabrochar da independência. Não foi preciso ser nacionalizado, já nasci nessa condição naquele ano em que se nacionalizavam igrejas,escolas, hospitais etc. Tudo isso para reconstruirmos o orgulho de um povo martirizado por séculos de dominação colonial.
Frequentei a escola primária naquela época em que ao caminhar pelas ruas era obrigatório deter a marcha quantas vezes nos deparassemos com uma instituição içando a bandeira ou cantando o "Viva Viva a Frelimo". Na escola levavamos boa tareia se o vinco das calças não fosse ao encontro da ponta aguçada da camurça. Enfim, sou dessa geração a que prefiro chamar de Samorista. Aprendi em casa e na escola a falar o Português. Changana ou qulquer outro idioma não oficial era proíbido sob pretexto de que deveriamos ser fluentes em português. A arma do colono que, apropriada, seria utilizada para a nossa emancipação. Por pouco tornava-me monolingue, se não fosse rebeldia que me levou ao Chagana da rua, e do bazar. Fico até atrapalhado quando, hoje, me perguntam qual é a minha língua materna e respondo: Português. Afinal o que é língua materna mesmo? No exterior a resposta é menos constrangedora por que a pergunta é formulada de outra maneira e quase sempre para preencher formulários.What's your first language? Em português, qual a tua primeira língua? Eu lá preenchia o que tivesse que preencher: Portuguêse. Hoje, por curiosidade, e interesse próprio como referi, que não tem nada que ver com o espírito nacionalista ou de busca de uma identidade autenticamente moçambicana, falo razoavelmente o Changana, entendo o Ronga e algumas palavras do Chope. Mas tenho irmãos, primos, vizinhos, amigos que não conhecem uma palavra das línguas não oficiais do nosso país, se não do português. Serão estes uns culturalmente alienados?
Detesto a musica e a musicalidade portuguesas, com algumas poucas excepções. Gosto dum Ray Charles, Otis Redding, Clarence Cárter, ArethaFlanklin, Steve Wonder, Bob Marley para mencionar apenas alguns. A todos esses foi através da caixinha mágica da televisão que passei a conhecer. Aprecio as fantasias do Michel Jackson, apesar de repudiar, caso se confirme, o seu envolvimento pedófilo. Cá de casa, sou fã incondicional do autor de Mamana Maria, refiro-me, a Salimo Muhamed. Podia fazer todo este artigo só dos ingredientes que na minha curta trajectória de vinte e poucos anos foram se constituído em elementos decalcadores dos meus gostos e da minha identidade moçambicana.Tudo isto vem a propósito do texto do escritor Mia Couto com o título:"Os sete sapatos sujos". Mia fez, na abertura do presente ano lectivo,uma oração de sapiência sapiente numa das nossas Universidades privadas.
Na verdade concordo em mais de 90% com os argumentos desenvolvidos por um dos nossos melhores escultores de palavras. Simpatizo muito, não só,com a veia artística da escrita do Mia, mas principalmente com a veia crítica do nosso processo histórico e do desiderato pelo desenvolvimento. Os sete sapatos do Mia revelam acima de tudo a finura com que o escritor e intelectual Mia escolhe as palavras certas para dizer coisas certas sobre o nosso destino comum, sobre o devir histórico da nossa moçambicanidade. Este artigo é reacção ao aperto que o sétimo sapato causa aos meus calos identitários. Na verdade o pensamento lá exposto não é novidade, para quem já lê Mia há algum tempo. Recordo-me assim ao de leve de um dos textos mais recentes do escritor com o título " a madrasta dos nossos filhos" publicado na revista Mais. Nesse texto Mia expõe as mesmas preocupações que as do sétimo sapato. O efeito da "sub-industria" televisiva sobre a nossa identidade. Como intelectual do final do séculoXX e início do XXI, a história não perdoaria Mia se não se referisse à televisão. "A ladra do tempo" como a chamou Sir. Karl Popper um dos mais destacados epistemólogos do século XX. Outros grandes pensadores e críticos da modernidade e da globalização também deixaram as suas inquietações com relação a televisão. Pierre Bourdieu, sociólogo Francês de gabarito é um deles. As críticas são diversas, desde o efeito perverso do roubo do tempo com consequências terríveis nos hábitos e rotinas quotidianas dos indivíduos aos horrores da pornografia infantil. Às vinte e trinta todo mundo esta colado à telinha. Até já lhe chamam de hora nobre. Quando de nobreza não vejo nada. As refeições são passadas na sala de estar ou melhor onde estiver a televisão, não raras vezes no quarto. Problemas de obesidade em crianças que passam horas a fio imobilizadas pelo aparelho já são reportados. Até as influências globalizantes do americanismo que como o escritor bem caracterizou nos transforma em meros consumidores e quase nunca em produtores de cultura se não de folclore para as horas mortas da TV. Muita coisa se pode dizer sobre os males que a televisão pode representar. Não me vou alongar nisso porque até concordo na generalidade com o nosso escritor.
O problema no meu entender surge quando Mia transforma "os jovens" numa espécie de papagaio imitador. Isso até é o de menos, podia dizer macaco imitador dum certo americanismo Hip-Hopiano e Mac Donalizado. Para Mia essa é a marca da nossa juventude urbana. Acho que há um certo exagero nesta caracterização, assim como uma sobrevalorização dos efeitos perversos da telinha. Mia crítica os jovens que têm como modelo (Role Models) ou referência os Jacksons e companhia. Mia clama por uma produção duma identidade Moçambicana, ele não usa esta expressão talvez por ser politicamente incorrecta nos dias de hoje, autêntica no sentido Mobutiano. Há um problema no argumento do Mia sobre os processos identitários. Por um lado, e com muita perspicácia Mia defende a processualidade como sendo constitutiva das identidades, mas, por outro lado, simultaneamente reclama aquilo que considera serem valores Moçambicanos de raiz. O que define a Moçambicanidade desses valores? Eu questiono. A seguinte passagem dos sete sapatos é elucidativa neste sentido:"Estamos dançando a valsa, com vestidos compridos, num baile de finalistas que é decalcado daquele do meu tempo. Estamos copiando as cerimónias de final do curso a partir de modelos europeus de Inglaterra medieval. Casamo-nos de véus e grinaldas e atiramos para longe da JuliusNyerere tudo aquilo que possa sugerir uma cerimónia mais enraízada na terra e na tradição moçambicanas". O que devo entender, como jovem Samorista, por cerimónia mais enraizada na terra e na tradição Moçambicanas? Devo entender um baile de finalistas na Josina Machel onde o mestre de cerimórias é o meu avô, de preferencia vestido de peles? Ou alguém vestido com aqueles trajes que só vejo nas coreografias da Companhia Nacional de Canto e Dança?Desculpe-me a indelicadeza da caricatura. Pode ser até ignorancia minha mas Mia, ajude-me a entender, o que existe de nacional ou tradicional nas danças e coreografias da companhia? Eu não vejo se não aquilo que dois históriadores britanicos, Eric Hobsbown e Terence Ranger, resolveram apelidar de "invenção da tradição". A "invenção da tradição" tem propósitos que só se podem explicar contextualizando-os no tempo e espaço em que ela ocorre. Só podemos entender a re-invenção, por exemplo, das autoridades tradicionais em Moçambique explicando a actual conjunctura socio-politica do pós-guerra e a moda da descentralização.
Na sugestão do Mia pelo resgate da tradição quem seria o guia? Aquele que nos iria dizer: - sim, isto é nossa tradição, isto é correcto. Não, aquilo já é americanismo ou, por outra, já não nós identificamos com a tradição dos Nguni pois os Nguni foram também colonizadores; sim, aquilo é certo e aquilo não. Quem tem legitimidade para desempenhar o papel de guardião das verdades formulares sobre a "nossa tradição"? Os avós? Os curandeiros? Quem? Os mais "velhos"? Que categoria mais problematica e carregada de autoritarismo. Somos todos hermeneutas dos tempos modernos,velhos e novos. Nem sempre, aliás raras vezes, o baú acumulado das experiências do meu avô de 60/70 anos contém informações úteis paraorientar a minha experiência de existência presente. O mundo hoje muda a cada instante, tudo é novidade, é moderno.Mia fala-nos de processos naturais analogos a processos sociais. A passagem seguinte é ilustrativa do que digo: "Falamos da erosão dos solos, da deflorestação, mas a erosão das nossas culturas é ainda mais preocupante". A ideia da analogia em si não é má, mas perece-me problemática. O problema reside no facto de só captar o lado negativo desses processos. Esse julgamento negativo, só o é do ponto de vista de quem julga. Esses processos "geológicos", "geofísicos" ocorrem desde que a terra é terra. Eles passaram a ser considerados problema a partir da altura em que o homem quis contrariar sua tendência por meio da ciência. Os solos se auto-regeneram, as florestas idem e por aí diante e isso em si não é negativo. A culpa da erosão costeira na Costa do Sol não é das águas. É dos homens que acharam aquele lugar hospitaleiro. Os homens procuram estabelecer padrões de convivialidade com a natureza que nem sempre são compatíveis com os desejos daquela.
O mesmo se pode dizer da humanidade. O problema da "erosão cultural", nem sei bem o que é isso, não reside na nova cultura ou novos modos de agir que surgem. O problema está naqueles que julgam esses padrões incompativeis com os seus próprios valores ou pelo menos com aqueles que desejariam ser os valores de uma sociedade como a nossa. O que estou a dizer é que o Hip-Hopismo,o Mac Donalismo não é problema em si. Só se torna problemático quando alguem os julga incompatíveis ou inaprórpiados para aquilo que devem seros nossos valores. Mas isso eu acho melhor deixar ao críterio de cada um. Ninguem escolhe a cultura ou povo em que nasce, mas pode escolher a cultura que quer desenvolver. É verdade que essa escolha pode e é condicionada. A questão não é ser ou não ser influenciado pela cultura americana veiculada pela televisão. A questão é quais são as alternativas de escolha de padrões culturais que se me oferecem, e dessas quais as que considero compativéis com os meus gostos e desejos. Não acho que deva existir alguem, uma autoridade, a fazer isso por nós, como se fez naquele tempo a que já me referi, do Samorismo. Acho que neste aspecto o Mia também concorda comigo.
Retomando o meu questionamento ao Mia. Como é que o Mia sugere que se passem a realizar os nossos casamentos? Deixamos de ir ao Palácio de Casamentos na Julius Nyerere e chamamos os avós para legitimaram a união na famosa cerimónia do lobolo? Pergunto: Hoje em dia, o que há de tradicional na "tradição" do lobolo? Há pouco tempo assisti a uma cerimónia de lobolo.Vi tudo mais alguma coisa. Na lista entregue ao noivo constavam: Vinho do Porto, refrescos " Coca-Cola", fato para o paí, sapatos bico fino para a mãe, perfume, etc. A cerimónia era tradicional Mia? A transformação da tradição, ou melhor, a re-invenção das tradições fazem parte dessa mesma processualidade que Mia reclama na constituição das nossas identidades. Não reconhecer isso é reclamar um certo essecialismo na constituição dos processos identitários.
Outrossim, a televisão não pode ser responsavel por tudo. Ocorre-me uma analogia que um crítico de Marx faz em um de seus escrítos. O referido crítico reconhece a validade de grande parte dos argumentos da teoria marxista. Mas considera que Marx usou uma espécie de lupa para ver a sociedade do seu tempo, e a imagem ampliada pela lupa só o permitiu ver homens a trabalhar. E assim Marx explicou tudo a partir das relações do trabalho. A Marx escaparam outras practicas sociais da vida quotidiana.Homens e mulheres fazendo. namorando, comendo, dormindo, etc. O mesmo poderia dizer-se do Mia com relação ao efeito da janelinha "mágica da televisão". Mia vê macacos imitadores sentados por defronte da tela, mimeticamente reproduzindo o americanismo Hip-Hopinano e MacDonalizado. Isso é problemático em minha opinião. O mesmo raciocinio que Mia utiliza quando se refere à tiragem e cobertura insignificante da nossa imprensa escrita, os jornais, e ao tipo de conclusões que podemos derivar nas nossas análises sobre os moçambicanos deveria aplicar à televisão. Quantos moçambicanos têm televisão? Mesmo considerando que se assista em casa do vizinho, temos que o número de telespectadores é menor que a população de um bairro de Maputo.
É claro que Mia teve o cuidado de delimitar o seu espaço ou campo analítico. Refere-se no seu texto aos jovens no contexto urbano. Mas mesmo assim, nesse Moçambique urbano quantos têm uma televisão? Há aqui uma sobrevalorização do efeito televisão sobre a "cultura" dos jovens, principalmente porque esses jovens são tomados como marionetes miméticas. Que vão imitando, copiando como diz Mia, esse americanismo Hip-Hopiano e Mac Donalizado sem nenhum sentido crítico. Já passou pelas nossas cabeças que o jovem pode estar a fazer uma opção consciente e consequente? Pode estar a calcular os custos e beneficios das suas opções? Entre escolher ser parecido ou assemelhar-se em termos de gostos a um Jackson, um Ja Rule ou a um joven lá do campo, lá da aldeia dos meus avós eu também preferiria a imagem Jacksoniana. Estarei por isso alienado?
Nos finais da decada de 80 e principios de 90 eu não assistia espectáculos de músicos moçambicanos. Simplesmente porque a qualidade sonora era péssima. Preferia ouvir um bom Hip-Hop a ouvir uma marrabenta com uma qualidade sonora que ofendia os ouvidos. Essas opções, Mia, são racionais. No sentido de cálculo dos meios para atingir determinados fins. O fim neste caso era ouvir algo que agradava aos ouvidos. Que vantagens terei cantando um Hip-Hop aos invés de uma marrabenta? Não quero com estas palavras sugerir, de modo algum, que as preocupações deMia são ilegitimas e irrelavantes, pelo contrário, quero apenas sugerir a ideia de que essas imagens todas que se nos oferecem pela televisão são apenas mais um ingredente que poderá ou não constituir-se em elemento da nossa identidade. Cabe a cada um de nós o devido sentido crítico para saber quanto de pimenta pôr no seu prato. Não é procurando uma identidade propriamente moçambicana que nos vamos tornar mais moçambicanos. Nessa busca quando muito só podemos inventar novas formas, novas maneiras, de ser, estar e sentir-se moçambicano. Nisso eu acho que estou em acordo com o Mia. Essa invenção não implica recuperar alguma autenticidade, não implica negar aquilo que a televisão nos oferece, não implica rejeitar a valsa no baile de finalistas, não implica não usar veu e grinalda nas cerimónias de casamento.
Nisso eu acho que estou em desacordo com o Mia. Esses produtos fazem parte daquilo que a modernidade tem para nos oferecer. Integrá-las ou não nas nossas trajectorias faz parte dessa processualidade que Mia reivindica ser constitutiva das identidades e eu acrescento das nossas individualidades. Cada um escolhe desde que o faça com responsabilidade os seus (role models). Enganamo-nos se achamos que os encontramos no passado. Esses do passado, como já referi, não servem para o mundo que vivemos actualmente, alías a única maneira de acedermos a eles é reiventando-os, reinterpretando-os. Nesse processo de reinvenção não há como escapar às influências externas. Cabe a cada um saber fazer as escolhas.Alias o remoto ajuda-nos a fazer isso.
Patricio Langa
Cape Town, 24/03/05
Comentário colocado no Blog Ideias para Debate de Machado da Graça
http://ideiasdebate.blogspot.com/
Texto de Mia Couto em
http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2005/03/os_sete_sapatos.html