O PAÍS QUE SOMOS
Por: Daniel Bell
Estava ainda a digerir com alegria e emoção o anúncio segundo o qual ‘precisa-se de um casal de raça branca, com conhecimentos e experiência na indústria hoteleira, com carta de condução’.
Revivi a conferência mundial contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e outras formas conexas de intolerância, em Durban, na África do Sul, em Setembro de 2001. Aquilo era turismo.
Nos anos 70/80 relembro-me dos nossos ‘abaixo’ ao racismo, à discriminação racial, que eram um sonho para a edificação de uma sociedade de justiça e de igualdade. Aquilo era teatro revolucionário samoriano.
Nos anos 1980, foi célebre a ‘Operação 24/ 20’, que atingia sobretudo brancos portugueses. Declarados por políticos moçambicanos (sem a observância da lei) de ‘persona non grata’, tinham o direito de permanecer em Moçambique por mais
24 horas, fim dos quais deviam estar fora do país, levando apenas 24 kgs de peso. Aquilo era loucura.
Os tempos mudaram, sim, mudaram.
Que mal tem em revivermos o tempo das vacas gordas e do vinho e do bacalhau temperado com alho. Se nós queremos reeditar o passado de boa comida lusitana e com fama mundial, nada nos resta senão um anúncio no jornal. ‘Precisa-se de um casal de raça branca portuguesa’. Ou então: ‘Precisa-se de um indiano com experiência de cozinha e piri-piri.’
Isso mostra a força da mudança, mudamos para esquerda, direita, avançamos para o Norte ou recuamos para o Sul, não alinhado. Cá no mercado laboral reina a diversidade de escolha e desemprego, sendo fácil o sr. Emídio Gomes (0824931750) ou Dioniso (0825210780) contratarem um branco casado pelo telefone.
A vida é assim, temos que acreditar que tudo muda, é a lei da natureza. Muitos de nós andamos a queimar pestanas na faculdade para ter bom emprego e salário, quando os requisitos são simples, ser branco e ter carta de condução.
Gostei a menção de casado, porque muitos não valorizam o casamento, quando é a célula da nossa sociedade. Abaixo ‘kumbuyeta’.
Não se esqueça: ‘Precisa-se de um casal de raça branca, com conhecimentos e experiência na indústria hoteleira, com carta de condução.’ Não vale a pena concorrer, pois brancos com carta de condução e casados são muitos, mas com um curso de gestão tirado num prestigiado colégio londrino são poucos.
Mesmo em Londres, quando estava a estudar, aos fins-de-semana tínhamos toda aquela malta que trabalhava nas obras. A mim sempre chamavam Dr. Bell. Não estou a gabar-me, era assim que os meus compatriotas me tratavam. E estávamos unidos em torno dos ‘Heróis do Mar’, só nos dividíamos quando era futebol (um do Benfica,
outro Sporting, ou Porto, etc.). Please! (por favor).
Não responda ao anúncio, é só para mim. Quero este emprego! Tenho filhos para cuidar, faço vista grossa ao racismo. Deus saberá me perdoar!
Por ironia do destino e, naturalmente, para o vosso espanto, eu, Daniel Bell, moçambicano de pele branca, casado com uma lusitana na Igreja Santo António, em Portugal, sou dos potenciais candidatos. Juro, vou ganhar este concurso.
Em primeira mão, informo aos caros leitores desta coluna que tenho uma entrevista amanhã. Levarei a minha carta de condução, a minha certidão de casamento, o meu diploma de ‘master’ em ‘Tourism Management’, obtido em 1998 em High College, de Londres.
Que pena! A minha rubrica ‘O país que somos’, publicar-se-á com irregularidade, será menos ‘bula bula’, mais cozinha e temperos. Adeus, desemprego!
Compatriotas, basta de ciúmes e inveja. Revelo em primeiríssima mão que na próxima semana (página de publicidade do ‘notícias’) será colocado outro anúncio do mesmo grupo hoteleiro (anónimo), mas para um bóer: ‘Precisa-se de um afrikaner
solteiro para gerir barracas na praia de Tofo,com conhecimentos de inglês e afrikaner.’ E terceiro anúncio: ‘Precisa-se de moçambicanos... para varrer a cidade’.
Anúncio para vos meter medo: ‘Procura-se um mulato mecânico de Alto Maé, hábil em roubar e matar. Admissão imediata’.
Agora convido-vos a uma gargalhada. O maior anúncio em todos os jornais, rádios e televisão e será da ... e constituirá uma verdadeira bomba:
‘Precisa-se de um(a) moçambicano(a) da ...(sem raça), para o posto de Secretário Geral’. Requisitos: saber escutar o batuque do povo e alimentar-se de maçaroca".
O que você leu são os próximos anúncios. Aguarde com humor.
CORREIO DA MANHÃ(Maputo) – 14.03.2005